Conto de natal dos tempos do ódio

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Imagem: Divulgação

Coluna Sorrindo o leite derramado

Ficar sozinho em casa, duas noites antes do Natal! A casa toda decorada… A árvore iluminada… Os presentes… Ligou repetidas vezes…Fora de área! Foi ao quarto e verificou de novo: tudo vazio! Ela foi embora! Só porque ele deu uns tapas nela? Isso é normal! No casamento, elas não juram que vão ser submissas?

“Está certo que a filha da puta tinha do que reclamar… Quando eu abuso, fico mesmo violento… mas porra, sair de casa e levar a menina! Quem ela pensa que é? Essas piranhas feministas ficam pondo ideias na cabeça dessas idiotas! Ah, segunda-feira eu falo com o pai dela e com o pastor… Ela volta com rabinho entre as pernas! Agora vamos curtir!”

Disse isso e entrou na Land Rover… Nem se lembrou que havia consumido duas garrafas de vinho sozinho e cheirado dois pinos…

Já não usava máscara há meses! Tinha que lutar pela liberdade de opinião – não ia atrás dessa esquerdalha comunista, disfarçada de ciência, jamais pensou em se vacinar e pressionava seus funcionários a não o fazer…” Ciência é meus ovo! KKKK!”.

Às três horas da madrugada, entrou na Israel Pinheiro cantando pneus e furou dois sinais. Parou na esquina e deixou duas travestis entrarem no carro. Mas logo ficou irritado com as meninas chamando-o de “gato gostoso”. Lembrou-se dela, a esposa, que nos momentos de intimidade, dizia a mesma coisa quase miando… Parou o carro já distribuindo safanões nas duas travestis. Quando elas estavam na calçada, desceu do carro e, revólver em punho, fez as duas tirarem a roupa… Pegou as roupas, pôs no porta-malas e deu dois tiros para cima. Ficou gargalhando vendo as duas travestis correndo, bundas de fora, e sandálias de salto, Avenida Brasil a fora…

Voltou para Land Rover e, revólver em punho, começou a atirar nas lâmpadas da decoração natalina. Cada luzinha que apagava era uma explosão de alegria em seu cérebro! Ah, os efeitos da cocaína!

Entrou então na Ilha.

Parou o carro na frente da padaria, foi andando até a beira do rio Doce e vomitou.

Aquilo parece ter ajudado a recobrar alguma lucidez. Guardou a arma, foi até o porta-malas e jogou as roupas das travestis no rio, pensou, “Que loucura, meu Deus!”.

Voltou ao carro e começou a chorar. Fechava os olhos e via a mulher sorrindo, ouvia a filha gargalhando… Ficou ali dentro de olhos fechados um bom tempo. Talvez tenha dormido, quem pode saber? Mas acordou ensandecido… Já procurando pinos no porta-luvas.

Cheirou uma carreira, tentou ligar para ela… Fora de área… “Piranha desgraçada!”.

Deu um cavalo de pau e voltou para o centro. Dirigiu um tempo e foi parar em frente à biblioteca. Desceu do carro com uma lata de tintas… Voltou para o carro, manobrou, subiu no teto e grafitou na fachada do prédio: MORRAM ESQUERDISTAS, FILHOS DA PUTA!

Entrou no carro se achando um revolucionário!

Foi em frente. Ainda deu uns dois ou três tiros nos enfeites de Natal do Shopping e foi aí que a polícia começou a perseguição.

Ele sempre quis ser perseguido, como nos filmes! A euforia da cocaína, somada ao álcool estava no auge… Pisou fundo!

Quando chegou à Rio-Bahia, nem percebeu que estava na contramão. Encontrou um enorme caminhão… Sua última visão foi uma mistura do rosto da esposa e o das travestis correndo na Avenida Brasil…

A Land Rover ficou irreconhecível.

No dia seguinte todos omitiram sua noite alucinante. Só citaram sua grande importância como gerador de empregos e como arrojado empreendedor. Um cidadão de bem!

No enterro todos se comoveram com a jovem viúva e sua filhinha.

Ao longe, duas travestis, com excêntricos gorros de papai Noel, acompanharam o enterro com um sorriso nos lábios.

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