Um conto da pandemia

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Coluna Sorrindo o leite derramado

Dona aparecida voltou para casa.

Foi uma quinzena brutal. Primeiro a morte da sobrinha, professora de educação Física, trinta e dois anos, forte e cheia de vida! Morreu sozinha na UTI e não pôde ter velório. Margareth, sua cunhada já era viúva e agora está sozinha! Ela e o marido foram consolá-la. Dois dias depois Margareth internou-se. Está na UTI até hoje!

Afonso começou a tossir dois dias depois que Margareth se internou, rapidamente evoluiu para uma falta de ar. Ele dizia:

– Me ajuda Cida! Estou me afogando!

Foram para o hospital e ele foi direto para UTI.

A última vez que viu o marido foi naquela noite. Dois dias de internação e Afonso partiu.

Aparecida teve uma crise hipertensiva.

Ficou quatro dias internada. O médico disse que, por pouco, ela não tinha um AVC. Seu exame sorológico deu negativo para o vírus… Sem nenhuma habilidade, o doutor comentou na alta:

– A senhora deu muita sorte!

Foi embora para casa com raiva daquele idiota! Será que ele não conseguia dimensionar o que é ficar viúva e perder a sobrinha única em uma semana?

Cleber, o filho, queria levá-la para casa, mas ela se negou. Disse que preferia ficar no cantinho dela, arrumar suas coisas, cuidar do Félix, seu gato e de suas plantas. Na verdade, não tinha coragem de dizer que não suportaria ficar muitas horas sob o mesmo teto que Cecília, sua nora… Os netinhos são sua alegria, mas não estava com espírito para brincar com eles… e eles fazem muita bagunça! Agora preferia a companhia de Félix.

Chegar em casa e não encontrar Afonso era doído. Mesmo que ele a tratasse como uma empregada, nunca tivesse preocupação com seus desejos e que mal conversassem… foram quarenta anos…Era uma lacuna.

Aparecida não conseguiu dormir em sua cama na primeira noite. A cama ficou espaçosa demais. A falta de Afonso ao seu lado parece ter se multiplicado e olha que tomou dois comprimidos de Rivotril! Às duas da manhã foi para sala, ligou a TV e ficou assistindo filmes antigos, dormiu sentada na cadeira de balanço, Félix no seu colo.

Passou uma semana e ela ainda fazia comida para duas pessoas.

Não teve coragem de tirar as roupas dele do armário.

O filho ligava todos os dias e insistia para ela passar uma temporada com ele. As ligações a constrangiam mais que consolavam.

A irmã e ela trocavam mensagens no WhatsApp quase o dia todo. Maria Amélia já passara pelo trauma da viuvez e dava bons conselhos (que ela nunca pensou em obedecer!). Apesar de unidas e de estarem passando por perdas, nunca cogitaram em morar juntas, mas se conectavam o tempo todo.

Félix percebeu que havia um espaço a ser preenchido e, lógico, se apressou em ocupá-lo! Se transformou no ator principal da companhia, papel que ocupou com naturalidade felina.

Foi na semana que o porteiro do prédio e sua mulher se internaram… Aparecida recebeu uma visita: Rodolfo, seu vizinho do quinto andar. Ele e Afonso vivam brigando, pois tinham visões de mundo diferentes, Afonso um conservador, quase fascista e Rodolfo, um socialista.

Trabalharam juntos na Ferroviária, até se aposentarem e, por uma coincidência, vieram morar no mesmo prédio. Brigavam por qualquer motivo, mas uma coisa os unia: adoravam jogar xadrez e tomar conhaque. Às vezes ficavam a tarde toda jogando, enquanto Aparecida lhes trazia acepipes.

Rodolfo trouxe um jarro com pequenas margaridas, disse que as flores alegravam seu apartamento. Ela as aceitou meio sem jeito e colocou-as na janela.  A primeira visita foi esquisita, o assunto morria e os silêncios incomodavam. Mas era como se uma parte de Afonso estivesse ali, uma brasa que se reanima.

A lembrança da rudeza de Afonso, foi se diluindo. Ele não havia sido um bom marido, mas a acompanhou por muitas décadas e, afinal, era o pai de seu filho! Receber o amigo era estranho, mas trazia uma boa lembrança, que a consolou naqueles tempos áridos.

Ela confessou que achava xadrez muito chato e pernóstico, ele riu! Propôs baralho, ela aceitou e, para surpresa de Rodolfo, dava-lhe surras no pôquer! Trocaram o conhaque por cerveja gelada, muito mais ao gosto dela… Um dia ela disse: “Menti a vida toda, como não seria boa nesse jogo?”.

Os meses se passaram, Rodolfo voltou à rotina de descer as escadas e Aparecida já deixava a porta aberta. Nenhum dos dois usavam mais máscara, já que só saiam para o essencial e juntos. Ela doou todas as roupas de Afonso… Félix passou a gostar mais do colo de Rodolfo!

Um dia, o velho amigo confessou que sempre amou Cida, mas guardava esse sentimento por respeito ao amigo, porém sem deixar de reparar na relação árida dos dois. Cida, inicialmente, ficou embaraçada. Pediu que ele não descesse mais e passou a trancar a porta.

Mas fazem uns três dias que eles voltaram a se falar e Cida e Rodolfo resolveram dormir na cama de casal. Cida descobriu que sexo pode ser bom e que um parceiro que se importa com seus desejos pode fazer uma enorme diferença! Estão se amando! Ela descobriu que o apartamento dele é cheio de flores e agora estão discutindo em qual apartamento vão morar… mas talvez mantenham seus espaços e curtam essa de namorados… Estão brincando com essa ideia!

Cida já contou para Amélia… mas não sabe como vai falar com Cleber… Tem certeza que Cecília vai encher a cabeça dele… Ah, mas a vida é tão curta, não é?

 

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