Dipesh Chakrabarty, historiador indiano, em seu artigo “O Clima da História: Quatro Teses”[1], sustenta que a humanidade entrou em uma nova era geológica, o Antropoceno:
“uma época geológica do nosso planeta cuja existência poderá ser comprovada por geólogos no futuro, analisando o que deixamos para trás. Em outras palavras, supõe-se que o nosso modo de vida industrial afete o planeta de tal forma que, no futuro, os cientistas encontrarão informações sobre isso nos estratos geológicos da Terra.”
Chakrabarty ressalta ainda que a crise climática nos coloca de frente a um “nós” universal, por meio da experiência partilhada de catástrofe, afirmando que não haverá botes salva-vidas para os ricos e privilegiados, como se nessa angústia do aquecimento global não existissem mais as diferenças de classes.
Esse é um ponto que pode ser rebatido quando observamos que há uma disputa em curso entre bilionários para o domínio do espaço. Elon Musk, fundador e CEO da Tesla e SpaceX, sonha em colonizar Marte.
Jeff Bezos, da gigante Amazon, pretende investir em viagens para a Lua, sendo que recentemente ele voou até o espaço por 10 minutos no primeiro voo sem piloto e tripulado. Dias antes, outro bilionário, Richard Branson, fundador do Grupo Virgin, também foi ao espaço por 20 minutos, e planeja proporcionar voos suborbitais turísticos.
Sendo assim, em um possível fim do mundo, podemos supor muito bem que bilionários terão o seu lugar ao sol reservado, colonizando outros planetas, enquanto o resto do mundo arde em chamas (ou qualquer outro cenário de fim do mundo possível).
Bom, os botes salva-vidas dos bilionários estão sendo elaborados, mas a experiência catastrófica do “nós” também caminha de vento em polpa para o sul do mundo, periferias, povos originários, pobres, pretos, trabalhadoras. Mas há um acerto de Chakrabarty na ideia de experiência compartilhada rumo à catástrofe, inclusive articulando o conceito de “história universal negativa”, do qual quero me valer para este texto.
Elaborar futuros é parte essencial da existência humana. O exercício de pensar que amanhã vou acordar às 6h30, lavar o rosto, tomar café e ir trabalhar é uma projeção de futuro, mas a curto prazo. Quando penso no longo prazo, para além da minha própria experiência no mundo, quando penso nas próximas gerações, vejo futuros negativos. Futuros verdadeiramente catastróficos e agonizantes. Sendo assim, acabo por pensar em uma história negativa vivenciada por quase todo o planeta, exceto os bilionários. Apesar de parecer exagerada, essa expectativa não é fruto de filmes de ficção científica.
Hoje (9/08) foi divulgado o relatório do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), da ONU, que mostra que “o aquecimento global está se desenvolvendo mais rápido do que o esperado e que praticamente tudo é consequência das atividades humanas”.
Segundo o estudo, “a elevação do nível dos mares, o derretimento de calotas polares e outros efeitos do aquecimento global podem ser irreversíveis durante séculos e são inequivocamente impulsionados por emissões de gases causadores do efeito estufa da atividade humana”.
Para além do cenário catastrófico dos próximos anos e séculos, o ponto mais importante para o hoje que podemos extrair no relatório é a atividade humana como a causa principal de todos esses efeitos. O secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou que o relatório é um “alerta vermelho” para a humanidade. Se isso não te causa arrepios é melhor parar de ler o texto.
O que isso tem a ver com o Dia Internacional dos Povos Indígenas (9/08)?
Outro relatório da ONU nos ajuda a perceber a correlação:
“Os povos indígenas são os melhores guardiões das florestas da América Latina e do Caribe quando comparados aos responsáveis por outras florestas da região. É o que aponta o novo relatório ‘Governança florestal por povos indígenas e tribais’, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e do Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e do Caribe (Filac). (…) Segundo a análise, as taxas de desmatamento na América Latina e no Caribe são significativamente mais baixas em territórios indígenas onde esses povos tiveram os direitos coletivos à terra reconhecidos pelo governo. Isso indica, de acordo com a pesquisa, que assegurar a posse desses territórios é uma maneira eficiente e econômica de reduzir emissões de carbono.”
Enquanto as ações humanas, baseadas em um modelo econômico (e existencial) capitalista, pautado no desmatamento, agronegócio, combustíveis fósseis e consumo desenfreado estão inaugurando uma nova era geológica e promovendo uma crise climática sem precedentes, povos indígenas estão assegurando em seus territórios a existência das florestas e a manutenção da natureza. Mas o governo brasileiro está se esforçando para que a máquina mortífera do capital siga deitando florestas e corpos indígenas.
Desde o dia 10 de maio deste ano, a comunidade Palimiú, terra Yanomani em Roraima, tem sido alvo de ataques de garimpeiros armados. A região é alvo de exploração ilegal de ouro, na qual milícias encapuzadas transitam pelo Rio Uraricoera, equipadas com fuzis.
Não é segredo que o governo Bolsonaro atende a interesses de garimpeiros e outros grupos, como fazendeiros, em suas políticas de destruição do meio ambiente e abertura para o garimpo ilegal, invasão de terras indígenas e quilombolas e destruição das florestas. É a boiada de Ricardo Salles passando.
O Brasil vai justamente na contramão de políticas ambientais e da proteção dos povos originários, permitindo que a natureza seja explorada até o osso e que protetores das florestas sejam assassinados.
Neste Dia Internacional dos Povos Indígenas, indígenas brasileiros, por meio da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), denunciaram Bolsonaro por crimes contra a humanidade e genocídio no Tribunal Penal Internacional. A denúncia abarca os ataques ao meio ambiente, o descaso com as populações indígenas no enfrentamento da pandemia e os diversos irrompimentos de direitos humanos.
Neste Dia Internacional dos Povos Indígenas convido para a reflexão sobre qual mundo queremos e desejamos deixar para as próximas gerações. Mas, principalmente, faço um chamado para uma mudança de sistema que ultrapasse o capitalismo, que não pense a vida e a natureza como mercadorias, e que dialogue com projetos de futuro possíveis e positivos, pautados na solidariedade e em uma percepção da relação com a natureza que compreenda o humano como parte desse todo e não o meio ambiente como campo puro e simples de exploração. É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?
Neste Dia Internacional dos Povos Indígenas, convido para a leitura de Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Sônia Guajajara, Shirley Krenak, e tantos outros e outras indígenas que ouviram de seus parentes a experiência de um fim do mundo no século XVI, com invasão, assassinatos, estupros, guerra bacteriológica, escravização e que, hoje, seguem cotidianamente experenciando catástrofes e fins de mundos. Mas que seguem de pé protegendo a si, aos seus e aos nossos.
“Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade. Nós não somos as únicas pessoas interessantes no mundo, somos parte do todo. Isso talvez tire um pouco da vaidade dessa humanidade que nós pensamos ser, além de diminuir a falta de reverência que temos o tempo todo com as outras companhias que fazem essa viagem cósmica com a gente. Em 2018, quando estávamos na iminência de ser assaltados por uma situação nova no Brasil, me perguntaram: ‘Como os índios vão fazer diante disso tudo?’. Eu falei: ‘Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa’. A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos. (…) Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades — as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência.” (Ailton Krenak, 2019, p. 15)
[1] CHAKRABARTY, Dipesh. “O clima da história: quatro teses”. Sopro, n. 91, p. 4-22, 2013.