O Tribunal de Contas da União (TCU) bateu o martelo e decidiu que não há qualquer evidência de que o município ou o governo Elisa Costa teriam se beneficiado de recursos da União destinados a minimizar os efeitos da enchente ocorrida em dezembro de 2013, como sustentava o relatório da Controladoria Geral da União (CGU). A decisão, no último dia 16, pode comprometer a operação Mar de Lama, que nasceu inspirada no parecer do órgão de controle interno do governo federal.
“Não houve desvios, desfalques, malversações, superfaturamento ou realização de despesa sem a devida comprovação, mas aplicação pura e simples em finalidade distinta da pactuada, em um contexto de calamidade pública, onde as dificuldades de gestão se acentuam”. Esse foi o entendimento do TCU ao aprovar, com ressalvas, as contas da ex-prefeita de Governador Valadares, Elisa Costa (PT), referentes aos gastos do ‘cartão desastre’ durante a enchente de 2013.
O mesmo entendimento já havia tido o Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas da União (MPTCU), ao aprovar, com ressalvas, as contas da ex-prefeita. “Não foram praticados pela Senhora Elisa Maria Costa atos com grave infração à norma legal ou regulamentar de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial”, opinou.
Foi com base nas alegações da CGU que integrantes da operação Mar de Lama conseguiram convencer juízes a quebrar sigilos e ordenar prisões, embora, apesar do estardalhaço promovido, não se tenha notícia, até o momento, de nenhuma sentença definitiva (transitada em julgado).
A operação Mar de Lama, como amplamente divulgado no país, foi deflagrada no dia 11 de abril de 2016, pela Polícia Federal, para investigar suspeita de fraudes em contratos da prefeitura de Valadares e do Serviço Autônomo de Água e Esgoto (Saae), conforme afirmava o relatório da CGU.
As fraudes, segundo a PF, estariam relacionadas a desvios de recursos enviados pela União para ações de socorro, assistência a vítimas e restabelecimento de serviços, após o rastro de destruição deixado pela enchente.
Na lista de crimes elencados pela PF, à época, constava a dispensa de licitações, corrupção ativa e associação criminosa, que, somadas a outros, teriam causado um “rombo de R$ 1,5 bilhão aos cofres públicos” – uma cifra espetaculosa que, mais tarde, foi timidamente desmentida pela própria PF.
Mas conforme sentenciou o TCU, no mês passado, não foi constatada qualquer evidência de desvio de dinheiro público, fraude em licitações, irregularidades, nem superfaturamento no município de Governador Valadares durante o governo Elisa Costa.
Para Jayson Keyby Castro, advogado da ex-prefeita, “fez-se justiça”. De acordo com ele, “a senhora Elisa Costa, assim como os outros membros do governo municipal à época, sempre agiu, leal e diligentemente, objetivando minorar os efeitos das chuvas que assolaram a cidade em 2013, sem desvio ou abuso de poder, dentro da lei, e isso foi corretamente reconhecido pelo TCU”, comemorou.
Relembre o caso
Em 2013, o mês de dezembro ficaria marcado como um dos mais trágicos da história de Governador Valadares. As fortes chuvas caíam em grande parte do Estado de Minas Gerais, incluindo todo o Leste mineiro.
Em Valadares, alertas da Defesa Civil informando sobre inundações, deslizamentos, desabrigados e vítimas fatais eram constantes. Córregos e lagoas da cidade e do campo transbordavam, alagando áreas que nunca antes haviam sido inundadas, como os bairros Grã Duquesa e Morada do Vale. O cenário era de destruição.
Após decretar estado de calamidade pública, a prefeitura de Valadares encaminhou à Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec) o Plano Detalhado de Resposta, com 28 metas para reparar os danos sofridos pelo município, que demandariam o montante de R$ 11.067.134,15.
A Sedec, quase 30 dias depois, autorizou apenas nove e um total de R$ 4.707.280,80, sendo que os recursos deveriam ser investidos apenas em ações de socorro, assistência às vítimas e restabelecimento de serviços essenciais.
Porém, enquanto a resposta não vinha, a prefeitura seguia o trabalho de limpeza e realização de obras e serviços, ao mesmo tempo em que enviava justificativas com pedidos de substituições de metas já realizadas com recursos próprios, por outras também emergenciais.
Dentre as solicitações estavam metas de reconstrução de equipamentos públicos e de prevenção, que foram consideradas pelo TCU como serviços relevantes para a comunidade local, como o restabelecimento de vias, remoção de entulhos e desobstrução de canais, todas ligadas a obras urbanas de trânsito e drenagem.
Dez meses após a enchente, técnicos da CGU estiveram em Valadares para apurar a aplicação dos investimentos e alegaram que muitos dos serviços executados pela prefeitura não demonstravam ser ações de resposta ao desastre, como a dispensa de licitação para contratação direta.
Ainda assim, o relatório da Controladoria Geral da União não continha nenhuma citação sobre reclamações, queixas ou denúncias de desvio de dinheiro público, se atentando especificamente em questões técnicas que tratavam da finalidade do uso da verba federal.
O relatório concluiu, então, que a aplicação dos recursos apresentava inconsistências, falhas e irregularidades que acarretaram em contratações diretas indevidas, pagamentos incorretos e “possíveis superfaturamentos”, com a execução das ações em desacordo com o exigido em decretos.
Tomada de contas
Ante a narrativa da CGU, o Ministério Público de Contas instaurou um processo de tomada de contas especial (TCE) para apurar se houve dano ao patrimônio público. Após análise dos fatos mencionados pela CGU, o MPTCU concluiu que os recursos foram integralmente aplicados em benefício da comunidade, na área de defesa civil, e não em outra função. “Nesse sentido, poderia haver, quando muito, desvio de objeto”, destacou.
O órgão também afirmou que não havia nos autos informação de desvio ou malversação dos recursos aplicados nas metas reprovadas (11 e 21), superfaturamento de obras, inexecução parcial ou falhas construtivas ou de qualidade observadas.
Além disso, frisou que “mesmo que se admita a existência de desvio de finalidade (…), em certos casos, as decisões não podem desconsiderar que os gestores agem premidos por circunstâncias ou realidades que exigem escolhas difíceis”.
Antes de opinar pela aprovação das contas, a promotoria federal ponderou que a decisão da prefeita de investir recursos em obras de reconstrução e de prevenção, ainda que tenha sido inadequada, do ponto de vista da legalidade estrita, não teria sido inoportuna ou desnecessária, “sendo provável que não houvesse outra alternativa que não fosse executar as intervenções para que a área atingida pelas enchentes retornasse à condição original”.
Puxão de orelhas
O ministro revisor do Tribunal de Contas da União, Jorge Oliveira, acompanhou as conclusões do MPTCU e, mais uma vez, considerou o relatório da CGU sem sustentação, por não apresentar comprovações das citadas irregularidades em contratações de empresas e serviços.
O ministro também se ancorou na análise do MPTCU ao afirmar que não havia outra alternativa ao Município que não a execução das obras, tanto de caráter imediato (emergenciais), quanto de caráter mediato (reconstrução), e reforçou que “diante de cenários de desastre natural, ações de reconstrução não deixam de ser igualmente importantes e de possuir certa urgência para que a cidade volte ao funcionamento normal em menor tempo possível”.
O ministro revisor Jorge Oliveira deu um ‘puxão de orelhas’ na CGU ao atribuir a execução dos serviços sem a aprovação da Sedec aos atrasos na liberação dos recursos, uma vez que o Ministério da Integração Nacional demorou quase 30 dias para negar o pedido formal do Executivo de repactuação de metas. “Não poderia ser exigido da municipalidade que ela se quedasse inerte nesse lapso temporal enquanto enfrentava grave cenário de calamidade pública”, cobrou.
Ao finalizar, ele ainda comentou que diante o cenário de destruição da cidade, o volume de respostas urgentes e a ansiedade natural da população atingida “pode-se até incorrer ou induzir a erro, sem, contudo, admitir que tais erros sejam capazes de configurar a existência de contratações diretas indevidas, pagamentos incorretos ou possíveis superfaturamentos, como concluiu o relatório ora impugnado”.