COLUNA SORRINDO O LEITE DERRAMADO
Alceu se olhava no espelho e podia ver as gotas de suor em sua testa. Sentia suas mãos frias e seu coração batendo acelerado! Fechou os olhos e respirou devagar, como a psicóloga ensinou, para não entrar em crise. Em poucos minutos ele recuperou o controle. Já podia ouvir a voz de sua tia na cozinha. Leonora era tia e madrinha. Ajudara Eulália a cria-lo, inclusive do ponto de vista do dinheiro. Sua madrinha era dentista e foi fundamental o seu apoio quando o pai do menino morreu de um ataque cardíaco, deixando Eulália sozinha com um filho de dois anos para criar.
A tia vinha se despedir do afilhado, que acabara de passar para a faculdade de direito de Salvador. Alceu seria o primeiro da família a estudar numa federal! Sua mãe era enfermeira e se formara na mesma universidade privada da irmã. As duas eram o orgulho do avô, que também já falecera. Alceu resolveu que não podia deixar passar essa oportunidade de reunir as duas mulheres de sua vida e revelar-lhes o seu segredo. Por isso estava tão ansioso! Esperava que sua gagueira não atrapalhasse…
Acabou de se arrumar e foi para a cozinha. Leonora o recebeu com um terno abraço e deu-lhe um presente. Quando ele abriu, tomou um susto: era a chave de um carro! O pequeno carro estava estacionado à frente da casa e era uma beleza: vermelho e já com um adesivo “Direito UFBA”!
Alceu chorou de emoção! Tinha tirado carteira no ano passado, mas só ia ter condição de comprar um carro usado daqui a alguns anos…
– Você merece, Ceuzinho! E vai facilitar sua vida! A federal é longe e você ia passar muito tempo do seu dia no transporte público… Tempo que você vai usar pra estudar, meu lindo! Fala alguma coisa, Eulália!
– Você é louca, mulher! Mas eu concordo! O nosso menino merece mesmo! Se o falecido Humberto estivesse vivo, também faria o possível para dar um carro pro filho!
Deram uma volta no bairro para experimentar a máquina e voltaram para casa. Eulália havia feito um jantar especial, porque Alceu iria no dia seguinte para a capital.
Na hora do café, ele tomou coragem e disse:
– Voooocês sabem que são as mulheres da minha vida, não? Então, eeeeu não poposso ir embora pra caaaaapital sesem contar uma coisa pra vooooocês.
-Ai meu Deus! Fala logo meu filho.
– Se você ficar quieta ele fala Eulália! Não vê que a gagueira até piorou? Fala com calma, Ceuzinho! Adorei essa parte de mulheres da sua vida!
Então ele resolveu falar sem rodeios:
– AAAAcontece que eu sou gay! E estou naaamorando o Rogério da D. Maaaarilda!
Eulália deixou o prato cair no chão e ficou parada olhando o filho. O prato se espatifando, fez um barulho estrepitoso, o que serviu para dar uma pausa na cena. Imediatamente, Leonora tomou as rédeas!
-Ai, Eulália, que desastrosa! Deixa que eu limpo aqui! Vai lá abraçar o seu filho!
Ela então obedeceu. Os dois se abraçaram e Alceu sentou a mãe na cadeira. Eulália começou a chorar.
-Por que você está chorando, mulher? Fala alguma coisa!
Alceu ficou sentado olhando para seu prato, uma lágrima escorria de seus olhos.
-Estou chorando de decepção, sei lá! Eu não estava preparada pra isso…
-Ai meu Deus! Vai dizer que foi surpresa! Que você não sabia que nosso menino é gay? Não posso acreditar na sua cegueira!
– Co-co-como assim tia? Eu dooooou pinta?
– Não amor! Mas as mães sempre sabem! E eu sou meio sua mãe, né? Ah, Eulália, que estupidez é essa de decepção! Decepção de seu filho ser lindo e estar indo estudar numa federal? Não estou te entendendo!
– Sim! Você tem razão irmã! Nosso Ceuzinho só nos dá alegrias … mas se o falecido estivesse vivo, ia enfartar hoje…
– Qual o quê, mulher! Aquilo lá era parâmetro pra alguma coisa? Um machista grosso e cheio de preconceitos! Você não me venha com essa ladainha de falecido agora! É menos um problema, na verdade! De preconceito esse mundo já está cheio, mulher!
– Mas e os parentes? E os tios, os primos?
– Não acredito que você está dizendo isso! Por acaso eles pagam nossas contas? Um bando de bolsomínions! Se eles não aceitarem, azar o deles! Quem lá tem filho na federal? Além do mais, eles são uns hipócritas!
– Ah, meu filho! Você tem certeza que não é… Sei lá! Uma fase! Que vai passar?
– Que fase o quê, Eulália! Para de tampar o sol com a peneira! O rapaz já está até na faculdade! Vê se isso é idade de ter fases! Ele quer apresentar o boy pra gente, sua burra!
– Mas eu sonhava com essa casa cheia de netinhos!
– Ô ignorância! Ele pode adotar ou ele pode recorrer à barriga de aluguel… Não viu o Paulo Gustavo? Ceuzinho ainda está no primeiro ano de faculdade, não é hora de pensar em filhos!
– Eu tenho medo dele ser agredido!
– Aí eu concordo com você, irmã! O Brasil é muito homofóbico e nós estamos vivendo uma onda de moralismo e hipocrisia. Mas ele está indo para um ambiente universitário, onde as pessoas são mais tolerantes. E nosso menino não é bobo! Além do mais, Eulália, já dizia o Guimarães Rosa, a vida pede coragem! Agora levanta e abraça direito seu filho, nossa joia! Nós vamos te amar sempre, Ceuzinho! Aqui será sempre seu porto seguro.
Os três se levantaram e se abraçaram, selando um pacto de amor e proteção. Então Alceu perguntou para tia:
– Dinda, muito obrigado por meeee aaaajudar! Por que voooocê é tão in in informada sobre LGBT?
-Ah meu filho, se eu tivesse tido a coragem que você teve hoje a trinta anos atrás, eu seria muito mais feliz com a minha amada! Mas eu era burra, feito sua mãe…