Crônica de um cronista sem assunto

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crônica de um cronista sem assunto
Imagem: Reprodução/Internet

Coluna Sorrindo o Leite Derramado

Caro leitor, escrever para um jornal ou uma revista é um martírio! Esta é a minha terceira experiência como colunista. Quando a Andréa me chamou topei na hora! Mas já coloquei a periodicidade para mensal… Pensei em meus afazeres de médico e professor, que não me deixam muito tempo para sentar e escrever, coisa que amo… Vocês dirão: “seu prazo é confortável, Mané…!”. E eu não vou discordar! Mas o problema não é o tamanho do prazo e sim o prazo! Quando ele vai chegando, as ideias se escondem… E eu começo a travar uma luta contra meus diabinhos (anjinhos?} internos!

Escolhi fazer crônica para o jornal, ou minicontos. Os textos pequenos são mais adequados para a leitura do jornal, pois terminam mais rápido. Mas, por serem pequenos, não quer dizer que sejam mais fáceis de escrever! O autor tem que ser muito objetivo e conseguir interessar (prender) o leitor com poucas linhas, um desafio! Tivemos alguns cronistas maravilhosos, a começar com os mineiros Fernando Sabino, Drummond e Paulo Mendes Campos. Sempre amei as crônicas de Carlos Eduardo Novais e do genial Luís Fernando Veríssimo… Então a responsabilidade é enorme! Talvez se eu me dedicar muito e escrever para jornais por mais umas cinco décadas…

Estou eu por aqui, sentado na biblioteca, matutando… A tela em branco parece me olhar com desdém! Um diabinho me sopra uma ideia óbvia: “Fala mal do Bozo!”, o outro responde: “muito previsível…” eu pondero, gostando da ideia: “pô, se eu fizesse uma crônica em que vivêssemos numa distopia…” os dois morrem de rir e me deixam inseguro, mas eu volto a argumentar. Seria assim: somos governados por um presidente autoritário e maluco, que posta vídeos de Golden Shower… Um dia chega uma pandemia e ele não sabe o que fazer. Orienta a população para tomar uma beberagem e continuar trabalhando… Morrem mais de meio milhão de pessoas e… Os dois diabinhos me interrompem e dizem: “quem vai acreditar num absurdo desses?”.

Eu mudo o argumento: “então vou fazer uma pequena fábula, em que o Rei tem o dedo podre para escolher ministros: escolhe um incendiário para o meio ambiente, uma envenenadora para a agricultura, um reitor que não quer que a população pobre estude para Ministro da Educação, um médico puxa-saco que só faz o que o Rei deseja, mesmo que seja ruim para a saúde do povo…”  O diabinho grita: “para, para, para! Isso não está bom! Parece louco demais!”.

Então eu penso num miniconto de terror, o enredo é assim: “uma empresa de plano de saúde resolve fazer uma experiência com seus usuários. Começa a dar medicamentos sem efeitos para uma doença endêmica muito grave. Seu objetivo é agradar o governo, conquistando assim vantagens no futuro. Infelizmente, os pacientes começam a morrer.

Para não comprometer os resultados da experiência, a empresa força médicos a mudarem o motivo da morte no atestado de óbito… Tudo é descoberto quando um grupo de médicos revoltados denuncia a empresa… Crime? Falta de ética? Os dois? Um dos diabinhos me corta, quando eu estava mais entusiasmado! “Ah, você vai fazer um conto de terror com esse tema em pleno outubro, mês dos médicos? Que mau gosto velho!”.

Mudei de novo: “e se eu fizesse um texto sobre um dirigente que quisesse sempre encobrir os maus feitos de seus filhos e esses filhos fossem realmente um quarteto de trambiqueiros? Isso deixaria o dirigente sempre de saia justa! Ele acabaria brigando com várias autoridades e tentaria até controlar a polícia…”. Eu mesmo desisti, porque a ideia era muito inverossímil! Que dirigente teria quatro filhos trambiqueiros? Que dirigente arriscaria seu governo encobrindo falcatruas dos filhos? Descartei logo a ideia estapafúrdia!

Os dois diabinhos me fustigavam… Provocavam dizendo que eu não sou escritor, sou só um médico metido a escriba! Minha autoestima foi lá embaixo! Maldito prazo! Resolvi então me sentar, olhei para a tela em branco desafiadora e comecei a digitar minhas mágoas e dúvidas. Às vezes, nós, cronistas, temos uma desleal concorrência: a realidade!

Sim, caro leitor! Os personagens da vida real são tão absurdos que nos deixam pouca margem para criar! O desafio da crônica é esse! Olhar a realidade com olhos críticos e falar sobre ela. Às vezes com ironia, outras com indignação e sempre tentando transmitir esperança… mas a realidade do Brasil atual, tão distópica, tão surreal, que chega a lembrar um filme de terror, nos desafia ainda mais!

Prometo ao leitor, razão desse jornal, que mês que vem trarei um texto com um enredo normal!

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