Coluna Sorrindo o leite derramado
Hoje em dia é fácil encontrar o Gonzaga. É só ir ao Bar do Portuga, que fica ali em Realengo. O lusitano abriu um pendura eterno para o goleiro aposentado… Pena? Gratidão pelos momentos de alegria? Quem pode saber? Mas a verdade é que o goleiro aposentado faz ponto no balcão, onde, numa sequência de copos, maltrata seu velho fígado.
Algumas vezes conta estórias de seus tempos da ativa. Jogou no Madureira, Olaria, Portuguesa da Ilha do Governador, Volta Redonda e até no Bangu. Esteve por várias vezes para ir para um dos grandes, só o Fluminense, que tinha Castilho e Veludo, não se interessou por ele. Não foi contratado porque tinha fama de “arranjador de placar”. Injustiça! Nunca se vendeu! Mas essa era a fama.
“O goleiro é um solitário”, sempre dizia. “Todos podem falhar, mas se ele falhar, o outro time sai comemorando!”.
Quantas vezes garantiu o zero no placar? Teve um jogo, contra o Botafogo, em que pegou dois pênaltis! E olha que, no segundo pênalti, o desgraçado do juiz mandou repetir duas vezes. Já jogou com uma costela quebrada; com febre; com gonorreia e até com um olho enfaixado! Era um herói! Poucos reconheciam… todo mundo só presta a atenção ao atacante, aquele que faz gols, afinal não é esse o objetivo do jogo? O goleiro entra e sai de campo sozinho, sem assédio de torcedores.
Cada jogo que fazia, cada defesa, cada saída nas travas das chuteiras adversárias… Tudo era para Luana, sua boneca loura. Era apaixonado por aquela mulher. E, se não era festejado pela torcida, era premiado a cada jogo com o amor de sua musa. Depois de cada jogo ia direto para casa, nada de comemorações! Faziam amor até amanhecer! Ele de luvas de goleiro, ela com a camisa do Vasco…
Um dia Luana o procurou num treino. Estava com os olhos vermelhos, havia chorado muito. Ele pediu para sair do treino e foram para casa. Ela, entre crises de choro, mostrou-lhe o bilhete: “Se seu marido não tomar dois gols no jogo contra o Canto do Rio, no próximo domingo, você nunca mais vai ver seu irmãozinho Ariovaldo!”. O bilhete também pedia que eles não avisassem a polícia ou o irmão seria duramente castigado…
Gonzaga consolou Luana e, aflitos, fizeram amor no sofá da sala.
Luana perguntou: “Posso confiar em você, meu Nego?”. Gonzaga ficou mudo. Ela se levantou e foi para o quarto. O goleiro foi atrás da amada, mas ela avisou: “Se você não fizer o que eles mandam, essa foi nossa última trepada”. Fez as malas e foi embora para casa da amiga.
Gonzaga não dormiu naquela semana. Como poderia se vender? Todos confiavam nas suas mãos! E o cunhado era um vagabundo, nunca trabalhou! Cheio de dívidas de jogo… Não valia a sua carreira! Ainda mais que estavam dizendo que o América estava querendo contratá-lo… Como jogar fora todo sacrifício de anos debaixo das traves? Entregar um jogo? Logo ele? Sem dizer que o jogo era decisivo: Se o seu time sequer empatasse, cairia para a segunda divisão! A torcida do Olaria nunca se esqueceria do goleiro que afundou seu time!
Pensava em Luana, nas noites de amor… Aquela mulher quente, que o deixava louco! As fantasias… Fazer amor de luvas de goleiro, agarrando-a como agarrava a bola! Ela com a camisa do seu time do coração, suada, com os mamilos apontando… Ah, como viver sem sua bonequinha? E aquele irmão vagabundo? Aparecera há uns dois anos, fugido de Minas Gerais, e ela não desgrudava dele… Dizia que, se os pais tivessem vivos, ele não faria tantas besteiras…
No domingo a Rua Bariri estava pululando! Estádio cheio, todos queriam ver o duelo! Quem iria cair? O Olaria, gigante azul e branco do subúrbio carioca não podia passar esse vexame em seu glorioso estádio… Raul Pistola, o treinador, fez uma preleção cheia de emoção. Gonzaga só pensava em sua amada e ouvia a algaravia da torcida lá fora. Seu Leão, bicheiro e presidente do clube parecia tranquilo, com seu charutão e seus óculos escuros, sempre com seu vira-latas no colo. Também fez um discurso em que disse que sua fé na equipe era total e que confiava no resultado.
Quando as equipes entraram em campo, sentiram o calor do subúrbio de Olaria, devia estar uns trinta e cinco graus à sombra, mas a sensação térmica era de cinquenta… A responsabilidade e os gritos da arquibancada… a temperatura subia!
Gonzaga viu Luana na arquibancada! Trocaram um intenso olhar. Ela não sorriu e o encarou demoradamente, como quem indagasse qual seria sua decisão? Ele baixou o olhar e foi fazer alongamento com seus companheiros.
O zagueiro Bifão, seu amigo desde os tempos do Madureira, falou ao seu ouvido: “Desculpa irmão, mas eu estou precisando de grana!”. Disse e saiu de perto. O goleiro não entendeu nada e pensou que talvez não tivesse ouvido direito, já que a fala foi meio abafada pelos fogos de artifício.
O juiz começou o jogo!
Bifão fez um gol contra e, cinco minutos depois, cometeu um pênalti infantil… Estava comprado o filho da puta! Cheio de raiva, Gonzaga tentou pegar o pênalti, mas Ariclenes, centroavante do Canto do Rio, bateu muito bem: 2 x 0 para o time de Niterói!
No intervalo Luana chamou Gonzaga, deu-lhe um beijo e agradeceu: “Sabia que você não ia me decepcionar!”.
No vestiário, Raul Pistola deu uma bronca em seu time e um tapa no safado do Bifão, que chorando tirou a camisa e não voltou mais ao clube.
O Olaria voltou endiabrado e com vinte minutos já tinha virado o jogo (3×2). Festa nas arquibancadas!
Aos quarenta do segundo tempo, aconteceu o lance que marcou para sempre a carreira de Gonzaga. Não se sabe se foi a luz dos refletores, a preocupação com Luana ou as noites mal dormidas, mas o grande goleiro deu um soco no vazio, na cobrança do escanteio e a bola sobrou limpa para Ariclenes completar para o gol vazio! Empate que levava o gigante da Bariri para a segundona!
Ao apito final, a torcida invadiu o campo e Gonzaga teve que correr muito para não ser linchado!
Chegou em casa triste e, para seu desespero, encontrou um bilhete, onde Luana se despedia dele e dizia que queria ser feliz e transar com um homem sem luvas! Acrescentando que não era Vasco e sim torcedora do Botafogo…
A carreira de Gonzaga nunca mais se aprumou. Ficou a fama de vendido, mesmo tendo falhado sem querer. E a torcida do Olaria, até hoje, o hostiliza.
Mas o que destruiu nosso herói foi descobrir que Bifão e Luana eram amantes! E que o sequestro foi simulado. Uma torpe combinação entre o zagueiro, sua boneca loura e o irmão canalha! Hoje o casal vive na Barra da Tijuca desfrutando de suspeita fortuna e Ariovaldo é dono de uma lotérica.
Gonzaga fica ali, no bar do Portuga, tomando umas e outras, maltratando seu fígado e se perguntando: Foi a iluminação que o traiu? Ou destino de goleiro é sofrer mesmo?