Mitologia Popular do Jequitinhonha: O Boi Janeiro

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Mitologia Popular do Jequitinhonha: O Boi Janeiro
Foto: Tião Rocha

Parte inseparável da existência brasileira, o folclore tem o mistério como uma de suas principais características. Ainda assim, mesmo em causos como O Bicho da Fortaleza (cuja fama pode ser lida aqui), o sombrio predomina, mas a travessura das crianças e a transgressão adulta também se destacam.

Vale lembrar, que em grande medida, foram as mulheres as responsáveis pela transmissão da estória da maldade de um fazendeiro que atentou contra a própria mãe. Dizem que foi uma forma de reforçarem suas importâncias nos seios familiares e, de quebra, assossegarem filhos e netos diante da insegurança que a noite representava naquele contexto rural.

Quem conhece alguma dessas expressões da cultura popular, sabe que é difícil imaginá-las sem seus elementos sociomísticos, ou separadas da alegria das travessuras, tampouco sem os ensinamentos dos desafios e das disputas entre as personagens.

Uma das manifestações folclóricas mais tradicionais do Vale do Jequitinhonha aglutina todos esses aspectos. Derivado do Bumba Meu Boi, também chamado de Boi-Bumbá no Norte e Nordeste do país, aqui, o Boi Janeiro ganhou feição própria. A ponto de suas singularidades serem notadas no interior da própria região, motivando comparações entre um município e outro.

Neste texto, o significado desse espetáculo – dentre outros trechos em destaque – tem como fonte o livro Estradas da Vida: Terra e trabalho nas fronteiras agrícolas do Jequitinhonha e Mucuri, Minas Gerais, de Eduardo Magalhães Ribeiro.

Todo ano é a mesma coisa. Nos primeiros dias do mês de janeiro, a magia é o estado de espírito das ruas por onde passa o cortejo. Ao som dos batuques, pífanos, gaita, sanfona, pandeiro e triângulo, que estilizam as canções, a convocação do povo é realizada: venha apreciar, venha ver o Boi Janeiro, que aqui não há […], venha dar valor, venha ver o Boi Janeiro passeando em flor.

A lida, no entanto, é arriscada. Como ocorria no passado, quando o gado arisco era criado na solta (ou na larga), o Boi, essa entidade cheia de manias e segredos, por vezes, escapa em velocidade, tencionando o lugar da festa. Animado pela incansável banda, persegue as crianças mais corajosas que o provocam. São crianças que mal tiveram tempo de avisar a mãe aonde iam – um eufemismo para o ato de fugir.

Mitologia Popular do Jequitinhonha: O Boi Janeiro
Foto: David Reeks

Pois uma coisa é acompanhar, sob a tutela dos pais, esse cortejo que se confunde com um ato, firme em seu objetivo de levar sua narrativa pela cidade. Outra, completamente distinta, é poder atiçar o Boi, experiência reservada àqueles que calçam o chinelo e saem em disparada quando soam distante as primeiras batidas do bumbo.

Sempre houve uma complacência dos pais e de toda a vizinhança para com essa travessura dos pequenos. Afinal, todos assim fizeram um dia. O resultado é uma falsa tourada em meio ao cortejo, enquanto este vai ganhando as ruas, por toda vida.

O nosso Boi-Duro

vamos vadiar

a nossa brincadeira

até o sol raiar […]

Eu queria ser vaqueiro,

um vaqueiro boiador,

pra vim aboiar meu gado,

na casa do meu amor (canção-estória do Boi Janeiro em Salto da Divisa).

Somente quando se achega um público considerado suficiente, e com o aval dos donos da casa mais próxima, é que se tem o ponto alto do espetáculo. A repartição do Boi é uma apresentação que ocorre na porta de quem paga determinada importância em dinheiro. É a hora de “passar a limpo” a sociedade local, satirizá-la, destinar à quem mereça menos consideração as piores partes do Boi.

Há uma inversão das posições sociais nessa “[…] valorização simbólica daqueles que são os subalternos todos os dias”. A figura ambígua do antigo fazendeiro, ora padrinho, ora patrão, dá lugar à quem por ele conservou obediência e solidariedade. O mando pessoal, elemento importante daquela estrutura agrária, é substituído pelo coro da plateia de gente simples, que legitima a divisão do animal símbolo de importantes fortunas.

Nas palavras do autor: É a maior homenagem que os moradores – ex-agregados, migrantes, aposentados, sitiantes, os recém-urbanizados – prestam ao Vaqueiro e ao Boi: o Vaqueiro-herói que puxa o cortejo, enfrenta e derrota um Boi bravo, distribui as partes do vencido a seu critério e fica, uma vez por ano, dono das ruas da localidade, um espetáculo que sempre foi seu nas mangas de pasto.

E assim, nesses dias, o ilustre trabalho do vaqueiro se liberta da casa de sede. Ao buscar o domicílio comum, deixa os boqueirões para combater na cidade, e o curral, que ligava a fazenda ao mundo, dá lugar ao palco da rua. Nesses dias, o vaqueiro recusa a marca maior do seu ofício e não enfrenta o desconhecido, mas protagoniza o costume de uma gente que sabe que narrar é resistir.

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