Enquanto mediador do primeiro encontro do leitor com a obra, o prefácio deve instigar, contextualizar o que há de vir nas próximas páginas, aproximando-se de uma crítica literária. Para Nas Terras do Rio Sem Dono, principal obra de Carlos Olavo da Cunha Pereira, o também jornalista Edgar da Mata-Machado escreveu um pequeno texto que é um ótimo exemplar do trabalho de um prefaciador.
Datado em março de 1980, o teor contestador desse escrito faz jus ao Comitê de Defesa do Crioléu (Codecri), organização responsável pela publicação da segunda edição da obra, que o manteve como prefácio. A Codecri atuou no mercado editorial como um braço do irreverente semanário alternativo, O Pasquim, mantido por Ziraldo, Henfil, Jaguar, Angeli, entre outros. Apesar dos atentados à bomba sofridos pelas bancas que o vendiam, o “jornal difamador”, com seu estilo paradoxal e irônico, debochou à beça dos governos militares, enquanto a Codecri publicava obras como Nas Terras do Rio Sem Dono.
Desde o início do texto é evidente o desabafo que beira uma revanche. Afinal, tratava-se de uma história que esperou quinze anos para ser contada. O agravamento da ditadura militar, via Ato Institucional nº 5, fez com que Carlos Olavo retornasse ao país somente em 1979. Consequentemente, o livro veio a público pela primeira vez no ano seguinte.
Não sem ressalvas. Mesmo na segunda edição, no calor da promulgação da Constituição de 88, a opção do autor pelo uso de codinomes em vez dos nomes de alguns dos envolvidos na trama foi mantida. Para Edgar da Mata, cautela justificada ante o “silêncio forçado” que sucedeu o quadro de acontecimentos que deu a Governador Valadares a fama de “cidade do ódio [sic]” na imprensa da capital do Estado, em 1964.
A propósito, quem foi Carlos Olavo? Dele, muito já se falou. Mas quando se trata de casos como este, dizem que “recordar nunca é demais”. Principalmente quando a preservação da história tende a caminhar de mãos dadas com as investidas das elites locais, que buscam manter prestígio elegendo o que deve ou não ser considerado memória coletiva.
Um escritor formado na atividade jornalística enquanto esporte de combate: essa talvez seja uma imagem que ajude a entender a trajetória de quem enfrentou outras duas ditaduras em sua saga pela América do Sul, nas décadas de 1960 e 1970, após deixar o Brasil para se manter vivo. Aqui, esse boxeador das letras fez fama no interior. Carlos Olavo estava distante dos holofotes de metrópoles como Belo Horizonte e São Paulo, bem como afastado do “litoral da civilização brasileira”. Em contrapartida, estava imerso na jovem e principal cidade que se erguia em meio à última e cobiçada fronteira agrícola de Minas Gerais, na evolução do assim chamado Sertão do Rio Doce.
Não à toa, Nas Terras do Rio Sem Dono se inicia com o diálogo entre um posseiro já estabelecido com um outro, o chegante, “Pau de Arara” – codinome pejorativo em referência ao veículo que transportou muitos nordestinos em direção ao sudeste, mas que também alude ao método de tortura física bastante usado na ditadura. Provavelmente, ele e esposa são dois dos muitos sertanejos que fugiam da convivência com as secas para se fixarem em alguma “terra da promissão”, tal como era a parte média do Vale do Rio Doce: – “Moço, esse rio tem dono? Não? Intonce, por aqui me fico”.
Dos acontecimentos que fizeram da vida de Carlos Olavo um drama, Edgar da Mata destaca o incêndio criminoso do seu jornal, O Saci, ocorrido quando o nome deste já havia sido alterado para O Combate (literalmente). Em seu texto, esse atentado contra a memória dos trabalhadores foi uma das “manifestações explosivas” de um problema que se agravou na região, mas que “nada teve de local”. Para ele, é como se o próprio país, como um todo, tivesse se constituído a partir da “estrutura [fundiária] que nos domina, e ainda tenta recolonizar-nos ou já em parte sensível logrou fazê-lo”, destaca.
Talvez esse preâmbulo foi escrito à luz de outro clássico, A Fronteira, de José Martins de Souza. Nessa obra, os lugares de fronteira agrícola são descritos como aqueles nos quais, passado o tempo em que predomina a redenção, alegria e fartura, tem-se um cenário marcado pela intolerância, ambição e morte. Contexto este que pode até cessar com o esgotamento da terra e dos recursos naturais, mas nunca enquanto “fardo”, ou “cruz a ser carregada” pela sociedade, argumenta.
Por esse ponto de vista, o clímax de Nas Terras do Rio Sem Dono é o desfecho de uma fronteira agrícola em sua mais alta conflitualidade, no espaço urbano da cidade que polarizava aquele contexto, predominando a violência institucional escancarada, a grilagem de terras e uma série de relações pautadas no mando pessoal. Agravou o momento decisivo pelo qual passava o país o fato de Governador Valadares ter se tornado um lugar onde a reforma agrária, proposta pelo governo João Goulart, era mais temida do que o próprio diabo.
Não é raro que se esqueça – às vezes propositalmente – que o enredo dessa história também é um depoimento que denunciou a coesão de grileiros e latifundiários que se opôs violentamente à ação política organizada de meeiros, parceiros, assalariados do campo e moradores de favelas expulsos das áreas rurais. Carlos Olavo, ressalta Da Mata, alia o fazer jornalístico engajado com a leveza de uma expressão literária capaz de confundir quem lê a história, abrindo margem para julgamentos que a restringem ao campo da ficção.
Mas sua importância é histórica, diz o prefácio que o adjetivou de necessário. Quer dizer, indispensável, aquilo que não se pode deixar de ter ou de ser realizado. Para Da Mata-Machado, Nas Terras do Rio Sem Dono é um desses livros imprescindíveis. Em seus dizeres, lê-lo é “atender ao apelo que dele brota para a luta pela humanização da nossa Pátria em regime de liberdade que não seja fingida”.