Coluna Sorrindo o Leite Derramado
Os plantonistas de pronto-atendimentos pediátricos gostam de noites chuvosas – quanto mais chuva, menos movimento… Parece que os pais e avós pensam duas vezes antes de sair com os pequenos na chuva.
Esta estranha história aconteceu (ou não?) há muitos anos, quando eu dava plantão num PA, em outra cidade.
Peguei o plantão às vinte horas. Encontrei a Dra. Madalena no quarto de plantão vendo televisão. A recepção estava vazia.
– Boa noite Madá! Vida difícil…
– Oi, tudo bom? Adoro plantões com chuva!
– Parece que não deu nada, né?
– Hi, menino! Coloquei minha leitura em dia!
Madá foi embora, subi para o refeitório e, ao fim do jantar, ainda assisti o noticiário da TV.
Lá pelas vinte e três horas, havia atendido somente quatro crianças. Olhei pela janela e o dilúvio não dava tréguas. Resolvi tirar uma soneca, já que havia trabalhado o dia todo.
Às quatro da manhã, fui acordado pela recepcionista, que pediu para eu descer para um atendimento.
Quando eu entrei na sala de atendimento, lá estava o trio: Nalrad, três anos, no colo da mãe Nadih e o pai, Lagra, ao lado.
Dei boa noite, com o meu melhor sorriso e, ao sentar-me e observar melhor, fiquei imediatamente perturbado. Alguma coisa, que eu não sabia direito o que era, me incomodou.
O garotinho estava bem cansado. Mas, reparando direito, Lagra e Nadih eram clones dos meus falecidos pais!
Procurei não demonstrar estranheza e fui logo brincando com o pequeno paciente:
– Cara, que bela capa de chuva você tem!
Ele, cansadinho, sorriu orgulhoso de sua capinha de chuva amarela, com carinhas do Mickey.
Apesar de risonho, não conseguia falar, de tão dispneico.
Imediatamente, pedi à enfermagem para iniciar uma série de jatos de salbutamol e um corticoide oral. Expliquei o procedimento aos pais e me retirei.
Fiquei observando a trinca de longe. Eles eram carinhosos com Nalrad, mas era evidente que estavam brigados.
Eu estava muito perturbado com a semelhança dos dois com meus pais… Resolvi me aproximar, disfarçando como se estivesse mexendo em algumas fichas.
O casal estava em plena “DR”. Nadih acusava Lagra de flertar com a recepcionista e até com as técnicas de enfermagem! Ele sorria irônico e o menino continuava sentadinho na maca, ainda com falta de ar.
Aproximei-me e brinquei com ele:
– Tá melhorando, Naná!
Ele sorriu para mim e fez sinal de positivo. Seus olhos eram castanhos e puxadinhos, o cabelo liso. Um belo rapazinho.
Afastei-me novamente e entrei no quarto de plantão. Impossível não relembrar as brigas dos meus pais, sempre por ciúme…
Liguei a TV, para ter algum som no quarto. Àquela hora da madrugada, estava passando um desenho do Manda-Chuva… Lembrei-me de quando eu tinha a idade de Nalrad… Era meu desenho favorito! Desliguei o aparelho e fui para a sala de atendimento.
Reexaminei Naná e vi, satisfeito, que depois da terceira série de salbutamol, o danadinho já respirava direito e até cantarolava uma música, que não identifiquei.
Fiz a prescrição, orientei Nadih e disse que eles poderiam ir para casa. Nalrad (fofo) deu-me um abraço apertado e um beijo de agradecimento…
Fiquei espiando os três irem embora. Guarda-chuva em punho, Lagra protegia sua família, Nadih só gesticulava e Naná já dormia, cabeça encostada no ombro da mãe. Sumiram na chuva grossa.
Fui para o quarto e tirei um cochilo perturbado. Sonhei que eu e o menino cantávamos a música do desenho Manda-Chuva (era a música que ele cantarolava!)… Acordei ansioso e fui olhar a ficha do atendimento. Chocado percebi que Nalrad é meu nome ao contrário!
Corri até a sala de atendimentos, como que para checar se havia sonhado…
Embaixo da mesa, achei o cinto da capa de chuva, amarelo, com carinhas do Mickey!