Coluna Sorrindo o Leite Derramado
Numa manhã chuvosa, em um futuro, talvez não tão distante…
Apesar de chuvoso, o domingo se parecia com qualquer domingo na Comunidade do Rato Molhado. A rua principal estava cheia, as vendas abertas e, no comércio vibrante, podia se comprar de tudo: uma galinha para fazer o almoço, cerveja e refrigerantes, carvão, perfumes, lingeries, bombons, presentes para agradar qualquer gosto! Também dava para comprar artigos religiosos, santos, velas vermelhas, búzios, turbantes, bíblias de todas as tendências… Peças para consertar bicicletas, chuveiros, motocicletas ou o que estivesse quebrado em seu barraco.
Na rua principal havia uma cacofonia generalizada: forró, funk, reggae, samba… todos os ritmos na altura máxima. Na entrada de um bar, dois adolescentes de uns treze anos disputavam uma sequência de passinhos. Num outro bar, os jovens se revezavam num animado jogo de ping-pong. Num canto da rua, na boca de fumo, uma discreta fila esperava sua vez para comprar maconha e, do outro lado, um grupo de jovens afinava seus instrumentos para o ensaio das músicas do culto das dez horas. Essa torre de babel era o estereótipo das manhãs de domingo na via principal daquela favela.
Exatamente às dez horas, começou o ataque.
As tropas das forças especiais do governo fascista do presidente Monstro, cercaram o Rato Molhado. O plano era simples: resgatar aquele território para as famílias de bem de nossa nação. Aquele antro de pecado e drogadição se tornaria um exemplo para os outros valhacoutos! Era um plano polêmico, o presidente Monstro sabia, mas tinha a certeza de ter a confiança da nação. Todos iriam entender se morressem alguns civis (se esquecendo que, na favela, não haviam militares). O que importava era o exemplo!
O ataque foi preciso e cirúrgico. Em pouco mais de uma hora, onde havia a grande Comunidade do Rato Molhado, só restavam escombros. Os poucos sobreviventes foram levados aos hospitais públicos da cidade e a conta de mortos, entre eles mulheres e crianças aos milhares, nunca será fechada. Corriam boatos de que grupos paramilitares, com apoio das forças regulares, invadiram os hospitais à noite, para completar a execução dos pacientes, mas não se consegue saber se isso não foi uma invenção dos comunistas para diminuir a glória da bem sucedida operação patriótica…
No dia seguinte, as manchetes de jornais (fortemente controlados pela Secretaria Especial de Cultura) foram unânimes: DEBELADO FOCO DE BANDIDAGEM NA FAVELA DO RATO MOLHADO.
A ministra da cidadania declarou: “Tenho orgulho dos escombros da Favela do Rato Molhado!”.
Não oficialmente, mas de maneira maciça, grupos de WhatsApp fascistas fizeram circular notícias de que, no Rato Molhado, havia amplo tráfico de sexo e pedofilia, além da produção industrial de drogas que iriam se espalhar pela cidade corrompendo os jovens das famílias de bem.
O líder do governo no congresso fez uma saudação ao governador da Província do Pão de Açucar e ao Presidente Monstro pela bem sucedida operação que iniciou uma verdadeira limpeza nas periferias do nosso país: “Agora as famílias da província vão dormir em paz!”. Os quinze deputados de oposição que tentaram se posicionar, tiveram seus microfones cortados e seus nomes encaminhados à comissão de ética do congresso… Aliás, aqueles foram os últimos dias do congresso! Vários parlamentares foram executados e mesmo o líder do governo foi preso, já que a filha dele, era filiada ao PT…
No mês seguinte, favelas das principais capitais também foram atacadas. Começou a surgir na imprensa o plano de construção de grandes empreendimentos imobiliários nas regiões reconquistadas – O plano “Chacreamentos Paraíso” – um projeto para as famílias de bem, que deveria ser capitaneado pela imobiliária da ex-esposa do presidente da República.
Os quatro líderes de oposição, que sobreviveram ao dia dos fuzilamentos (a promessa de metralhar a oposição foi cumprida!), conseguiram sair do país para o exílio em Cuba.
Não saiu sequer uma nota de rodapé nos jornais, sobre a prisão do padre Júlio Careca e do prefeito do Psol de São Paulo, duas vozes que se ergueram a favor do povo favelado… mas o chocante mesmo, foi o silêncio sobre a implosão da igreja do padre Júlio Careca.
O presidente de Angola, numa reunião da ONU, falou em genocídio do povo da periferia do Brasil e comparou o Presidente Monstro à Adolf Hitler. A declaração, considerada exagerada e absurda, gerou um grande desconforto e foi fortemente combatida pela imprensa brasileira. Nosso chanceler, veterano de governos direitistas, declarou o presidente de Angola “persona non grata” ao Brasil e humilhou publicamente o embaixador de Angola.
Numa reunião, não gravada (não se comete o mesmo erro duas vezes), o Presidente Monstro parabenizou seu Ministro da Limpeza Étnica, General Melena, pela eficiência com que foram destruídas as principais favelas brasileiras, destacando a alegria das famílias de bem do país, que agora poderiam dormir tranquilas… e pediu que o ministro detalhasse o próximo plano: a extinção de uma nação indígena no Pará.
Caiu a noite e as famílias de bem, após chegarem da pizzaria, vindas do culto religioso, podiam dormir tranquilas. Finalmente o Brasil superou o tempo do estado laico e todas as famílias da Pátria estavam mais próximas de Deus!