Um levantamento inédito da Defensoria Pública da União (DPU) em parceria com o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Candido Mendes (RJ), revela que o Brasil vive uma expansão acelerada do uso de tecnologias de reconhecimento facial, muitas vezes sem o conhecimento da população e sem regulamentação adequada.
O relatório Mapeando a Vigilância Biométrica, divulgado nesta quarta-feira (7), aponta que desde a Copa do Mundo de 2014 o país se transformou em um campo fértil para a implementação dessas ferramentas, principalmente por órgãos públicos de segurança.
Atualmente, ao menos 376 projetos de reconhecimento facial estão ativos no país, com potencial de monitorar cerca de 83 milhões de brasileiros — aproximadamente 40% da população. O investimento público já chega a R$ 160 milhões, segundo dados de 23 estados.
Os pesquisadores alertam para ausência de normas legais específicas, falta de controle externo e baixa transparência na contratação e uso desses sistemas. “As soluções regulatórias estão atrasadas”, afirma o relatório, que chama atenção para riscos como erros de identificação, discriminação racial e mau uso de recursos públicos.
Reconhecimento facial em Valadares
A prefeitura de Governador Valadares implantou, desde 2022, um sistema de reconhecimento facial em várias áreas, incluindo escolas municipais e pontos estratégicos da cidade para monitoramento de trânsito. A tecnologia é usada para registrar presença de alunos, identificar veículos e pessoas em áreas de monitoramento, e integrar informações à Polícia Civil e Militar.
Casos de erro e discriminação
Entre 2019 e abril de 2025, o CESeC identificou 24 casos de falhas em sistemas de reconhecimento facial. Um dos mais emblemáticos ocorreu em abril de 2024, quando o personal trainer João Antônio Trindade Bastos, de 23 anos, foi confundido com um foragido e retirado por policiais da arquibancada do Estádio Lourival Batista, em Aracaju (SE). Bastos, que é negro, foi revistado e interrogado até provar sua identidade.
O caso gerou repercussão e levou o governo de Sergipe a suspender o uso da tecnologia pela Polícia Militar, que até então já havia efetuado mais de dez detenções com base no sistema.
Segundo o relatório, mais da metade das abordagens motivadas por reconhecimento facial resultam em erros. Estudos internacionais citados no documento mostram que as taxas de falhas são de 10 a 100 vezes maiores entre pessoas negras, indígenas e asiáticas, em comparação com brancos.
Projeto de Lei avança, mas preocupa especialistas
O Senado aprovou, em dezembro de 2024, o Projeto de Lei 2338/2023, que pretende regulamentar o uso da inteligência artificial, incluindo sistemas biométricos. A proposta está agora na Câmara dos Deputados, que criou uma comissão especial para debater o tema.
Apesar de prever restrições ao uso dessas tecnologias em espaços públicos, o texto traz múltiplas exceções, como investigações criminais e busca de desaparecidos. Para os autores do estudo, isso pode abrir brechas para a manutenção de um estado de vigilância generalizado.
Recomendações e alertas
O relatório defende a aprovação urgente de uma lei específica sobre reconhecimento facial, com padronização de protocolos, auditorias independentes, transparência nas contratações e autorização judicial para uso de dados em investigações. Também propõe a limitação do tempo de armazenamento de informações biométricas e o fortalecimento da fiscalização sobre empresas que operam essas tecnologias.
“O relatório evidencia tanto os vieses raciais no uso da tecnologia quanto problemas de mau uso de recursos públicos e falta de transparência na sua implementação”, afirma Pablo Nunes, coordenador do CESeC.