Coluna Sorrindo o leite derramado
E se Alberto Santos Dumont se encontrasse com Jano, o mitológico sujeito de duas caras da Roma antiga? Alberto se sentiria encorajado a colocar o seu invento para voar? Um trambolho esquisito, mais pesado que o ar, que voava ao contrário? Toda Paris olhando, em frente à Torre? Aqueles parisienses xenofóbicos, com olhares reprovadores…
Alberto acorda cedo e vai ao café… Está preocupado. Fez e refez seus cálculos. Tem certeza de que o 14 Bis vai ser um sucesso, mas seus amigos brasileiros são tão pessimistas! E ainda está um pouco ressabiado com o boato que um tal de Wilbur Wright andou perguntando coisas em sua oficina… Já tinha ouvido falar dele e de seu irmão…
Alberto senta-se em sua mesa predileta e pede seu café. Claudete, a garçonete, o trata com carinho que merece um freguês habitual e traz o desjejum com rapidez. Quando Alberto vai começar a comer e pousa seu jornal sobre a mesa repara que, ao seu lado, está um homem de chapéu coco. Ele se veste com uma roupa adequada para o clima de Paris, diria até elegante para o gosto sofisticado de Alberto… Mas ele tem duas faces! É engraçado como ninguém repara! Parece que só Alberto vê a aberração!
– Bom dia Alberto! Você não se lembra de mim?
– Jano?
– Sim, meu caro! Admirável seu conhecimento da mitologia romana!
– Ah! Sabia que já tinha visto o senhor em algum lugar! Roma no ano passado?
– Sim, eu estava no passeio de balão!
Jano era bastante informal para um Deus Mitológico e gostava de incentivar os começos das grandes jornadas.
Alberto olhou bem em seus quatro olhos e disse:
– Meu caro e divino senhor… Estou para mudar a história… Mas tenho medo! Sua presença, de certa forma, me encoraja!
Olha em volta e diz:
– Todos aqui nesse café acreditam que é impossível algo mais pesado que o ar levantar voo… Amanhã, eu e minha máquina, provaremos o contrário!
Jano ri com as duas caras e uma de suas faces comenta:
– Acate os fatos sem discutir, até que um novo conceito se imponha…
A outra face, após dar um gole numa caneca de vinho, arremata:
– Lembre-se, meu caro Alberto, de descartar os fatos inúteis!
O aeronauta dá um sorriso nervoso e descarta seu café, fazendo um gesto para Claudete, que automaticamente lhe traz uma taça de champanhe. Mordendo seu croissant, ele rememora:
– Sabe, Jano, tentei outros artefatos e não fui muito feliz, mas o 14 Bis vai dar uma volta na torre Eiffel! Vou fazer história hoje!
As duas caras riem e falam ao mesmo tempo, dificultando o entendimento (não bastasse o forte sotaque italiano):
– Fique sempre com a máquina mais eficiente/decida o que é eficiência!
Alberto sorri de novo e, entusiasmado, dá mais um gole em sua taça!
– Sabe Jano, na semana passada mandei um telegrama para Pedro II. Ele confia em mim e o tesouro brasileiro deve investir mais alguns Reis em minhas pesquisas.
Jano bebe mais um gole de sua caneca, com as duas bocas, dá um arroto, que só os deuses estão autorizados a dar e fala, novamente, ao mesmo tempo:
– Quando a máquina funcionar, todos se convencerão! / A máquina vai funcionar quando todos estiverem convencidos!
A face de Alberto se ilumina e ele entende que colocar o seu artefato nos ares será o seu melhor argumento! Pede outra taça para a garçonete, que já íntima, lhe diz:
– O senhor não acha que está exagerando no café da manhã?
Janus dá uma gargalhada. Vira sua caneca e se prepara para sair, não sem antes suas duas bocas proferirem:
– A verdade sempre se sustenta meu caro! / quando as coisas se sustentam, elas começam a se transformar em verdade!
Alberto quase enxerga seu 14 Bis se sustentando no ar!
Jano pisca o olho – com as duas caras – e some no burburinho do café.
Alberto se levanta e deixa uma generosa gorjeta para Claudete, sua garçonete favorita.
De longe, Orville Wright o observa…