Tem um tempo que não uso óculos. Para minha surpresa, veja só que beleza, a visão melhorou de supetão. Doutor que me disse, milagre não sei se foi, mas pediu para voltar depois, para ver como andava as janelas da alma. Depois de muito ver, fui lá para crer se aquilo continuava. Era o que eu pensava. Vou contar pro cês!!!
Chegando pronto, com alguns pontos, conversei com o Doutor. Ele sorriu, viu só e riu, dizendo que com o tempo a gente vê menos. Fiquei então atento, ouvindo cada palavra e vendo o que se passava dentro do consultório e na minha vida. Ah, era tanta coisa, ali no lugar dele e no meu lugar, histórias e memórias que justificariam o embaçamento da retina. Quiproquó e sina, leite derramado e dia suado, despedida dela, retorno da aquarela, aguardar menino voltar da escola, eu a dar a aula, ofegante só de lembrar. Não era o ambiente da terapia, sei. Mas meus olhos registraram tudo no seu silêncio manso.
Doutor continuava com seu sorriso de sabedoria, buscando no armário artefatos para ampliar minha objetiva. Apertei os músculos da órbita, pareceu anedota, a olhadela que dei no que na minha frente tinha: diversas armações de cores em suas lentes diferidas. Perguntei o que era aquilo, o que faria com isso, e ele me respondeu para que eu experimentasse as lentes dos outros que tiveram ali antes de mim. Achei astuto aquilo, duvidei do propósito, mas logo aceitei o desafio de olhar pelo olhar de alguém. Ah, eu até diria amém. Mas me perguntei dos óculos que usaria, pra saber de quem.
O médico da visão abriu um sorrisão e entregou a armação da Gertrudes. Grande retangular metálica, no brilho de um vermelho nítido, coloquei-os em mim e a pergunta que veio era se enxerguei melhor, enfim. Respondi que era turva a imagem, vendo a seguir uma casa solitária, e uma mesa posta todo dia. Apertando um pouco meus olhos, consegui alguma nitidez, e enxerguei uma porta aberta com um casal na frente. Um menino surgiu e veio na sequência, correndo para os braços da mulher, que Gertrudes entendi ser. Ouvi até palavras naqueles óculos, da vizinhança que falava o quanto de rabugice existia em Gertrudes. Porém, pelas lentes da armação dela, trincadas que eram, só vi coração e uma vida de lembranças, o que dava a ela esperança de no próximo dia ela ver algo melhor. Eu enxerguei apenas só, disse para o Doutor. Mas a consulta não terminou, foi o que ele me falou.
Desse modo assim, Doutor entregou para mim outra armação. Essa era mais fina, sofisticada, pensei que a mulher que o usava era pra lá de requintada, pela circularidade do artefato. Bordas ajustadas, linhas melhoradas, de um dourado brilhante, pessoa de alto nível. Coloquei-os em mim, e pude ver, enfim, o quanto estava errado de imaginar antes de ver o que ela viveu. A sofisticação era da armação, mas a simplicidade era a sua paixão. A fineza dos óculos poderia dar um ar de autoridade, mas o medo nela dava pra notar a cada coçar de mão. E as lentes eram tão límpidas, que pensei que ela enxergaria o quão grande era sua vida.
Contudo, não era isso o tudo, o fato da lente ser limpa. Eram águas da limpeza dela, a alma que despejava todas suas emoções que represava por dentro. Aquela armação toda era a sua proteção. E eu pensei que sua fortaleza era o que os outros viam de sua profissão. Errado enxerguei, via de longe, hipermetropia. O escudo que possuía eram suas lentes a refletir pra ela tudo que vivia, apesar do sorriso estampado em meio à escuridão. Vi melhor agora. Porém, antes visualizei que estava na contramão dos meus pensamentos. Foco desfocado.
Retirei os óculos de Sofia e Doutor me entregou o de Pasárgada, no que ele disse ter pertencido a uma adolescente. Fiquei um tanto contente, de poder ver novamente pelos olhos da juventude. Lembrei da minha, das festas da amizade que tinha, pais me esperando depois da confusão. Disse Doutor que a menina era esperta que só, de uma armação bem notada e colorida, trapézio na parte superior, fechando e ovalando-se na parte inferior, a ser uma reta em cima e uma volta circular na parte de baixo. Cores verdes brilhantes, de vivacidade fascinante, lentes impressionantes, multivisão de significados. Coloquei logo para ver se via melhor. Logo encontrei um quarto trancado, um diário anotado, e noites testemunhas de uma dor guardada. Lá fora de seu quarto ela ouvia, como que podia, uma jovem tão linda ser sofrida assim.
Mas Pasárgada piscava seus cílios, registrando tudo aquilo, dizendo com seus olhos a angústia de se expressar. Dúvidas ela tinha, certezas nem imagina, de responder a perguntas todas de uma pessoa que acabou de sair do castelo da infância. E Pasárgada ficava, no seu quarto a morada, da alma grande, pequenina diante do mundo. Rabiscava com o lápis, no papel e no seu rosto, como queria ser sem ter alguém para perguntar por que. E a tinta que ficava, no tecido da pele e do caderno, era seu tormento, plano da esperança. Ainda não tinha confiança, e meu soluço queria dizer para ter, apesar de a mim ter pouco pra ver. Pasárgada existia, mas queria viver. E eu nem imaginava o quanto a jovem possuía dentro daquela lente a reter. Meu astigmatismo me impedia de ver a claridade em Pasárgada de ser.
Consulta terminando, eu me aprontando o quanto, a responder que via melhor. Médico sorriu, perguntou se queria mais uma lente, no que não recusei, dizendo mais uma, sim. Dessa vez veio uma surrada, gasta, cheia de arranhões e com poucas cores. Dura, rígida, pus logo na vista, a armação de Pedro. Austeridade pensei, pelo formato daqueles óculos, em sua estrutura quadrada, grossa, rude, em cores obscuras, cinza, inibidora de afastar. Também tinha a grossura das lentes, muito arranhada, no que pensei que não dava pra ver. Porém, ao ajustar o foco, pude notar o dó da incompreensão de quem o via.
Pedro acordava cedo, lotação no ponto da madrugada, para buscar recursos, o alimento da família. No lugar do labor, todo o furor e palavras mais ásperas que suas lentes. Parco salário, protesto que não havia, pois, a justificativa era que existia uma fila de pessoas querendo o que ele tinha. Sinal que alardeava ao fim do expediente, menos Pedro do que o de antes, ele voltava pra casa. Quem o olhava, assustava-se. Os que o ouviam, o repeliam. Sem crenças e fé, Pedro caminhava de volta para seu destino. Mesmo na rua de seu domicílio, ninguém se arriscava a conviver com ele uma noitada, para uma amizade cultivar. Pedro não era de animar, ele ouvia, e seguia sua travessia de ser duro na ótica dos outros.
Contudo, ao ingressar em casa, ao seu pescoço sua filha pulava, ao encontrar a volta de quem ela amava, nas lentes da menina que sempre o aguardava, brincando. Era por isso que Pedro voltava. Fechava a porta de casa e deixava sua armação no canto distante, lá fora. Pranto agora não se faz questão. Esposa e filha o esperavam, à mesa, para a refeição.
Finalizando o diagnóstico, Doutor notou o quanto eu tinha visto e me perguntou: agora enxerga melhor? Respondi que sim, não poderia ter experimentado lentes melhores, eliminando a miopia que eu tinha da vida. O médico sorriu, seu semblante foi de conforto, e trouxe para mim a armação adequada, um formato que nunca vi. Lentes translúcidas, multifocal, com cores distintas a depender do ângulo que se via, encaixou-se perfeitamente na minha vista. Coloquei-me logo a usar, os óculos com as lentes alinhadas à minha visão e a imagem diante de mim que surgiu não acreditei ver.
Doutor riu-se demais, a não mais sustentar todo o seu mistério para mim. Pegou uma flanela, tecido menor, e limpou o tecido maior, retirando a poeira dos vidros da armação, das lentes, da minha alma: chorei. A imagem dele recuou centralizada e ficou a se pôr à minha frente dentro do espelho. Os óculos se ajustaram a mim, um reflexo no vidro se fez, enfim, uma palpitação sentida ao ver. Hoje pude entender, a partir das lentes que encontrei, que quem falava comigo, o Doutor que se pôs a me atender, compreender e me curar nada mais era do que eu, pois a mim eu não enxergava, sentia…
A mim mesmo eu não conseguia ver…