As muitas coisas que podemos viver

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As muitas coisas que podemos viver
Imagem: Reprodução/Internet

Um dia eu acordei e me coloquei de novo no tempo. Fiz o que devia ser feito, na rotina sagrada da repetição, a realizar os mesmos atos que me trouxeram até aqui. Levantei devagar da cama, soltei o bocejo de sono, sendo o mais pesado na segunda-feira, e caminhei pela casa. Preparei o café, deixei tudo o que posso fazer já pronto, e me vesti para o trabalho. Coloquei os fones no ouvido, liguei minha playlist, fiz minha caminhada para minha outra casa, residência da profissão, e vi as cenas de sempre, a contextualizar minha jornada de ser. Os jardins da praça, seus bem-te-vis cantando, pombos sobrevoando e maritacas gritando. Senhores na padaria, mulheres na varanda, crianças com suas mochilas, pois, na hora da escola está. Alguns cachorros correndo livres, outros tantos não, e eu passeando pelo meu trajeto, do acordar ao trabalhar. Vejo tudo isso e penso em muitas coisas.

Um dia eu nasci e me coloquei no tempo, então. Saí do ventre de minha mãe, chorei tanto que nem me lembro, e meu pai me viu e ouviu tudo isso. Estava eu deitado no melhor conforto humano, a maciez do colo de mãe, recebendo o melhor do amor, calor dos pais. Vi, com meus olhos bem pequenos, gigantes sorridentes a me cortejar, dizendo o que eu seria ou não na vida. Nesse dia não fiz nada, a não ser ser eu mesmo, e o tempo passou devagar, mas passou. Nas fotografias eu me vejo, e nos olhos dos meus pais também consigo me visualizar. Aprendi a andar, a falar, a tocar, a entender como eram as coisas. Brinquei, me diverti, fiz amigos e amigas, e fui feliz. Vejo tudo isso e penso em muitas coisas.

Um dia eu fui adolescente e esse tempo me colocou no tempo. De um lado ao outro eu só via mistérios, ciência, religião e filosofia, além das diversas atividades da gramática, e as questões insolúveis da física. Acordavam-me, mãe dizendo que o café estava na mesa, e o meu pai esperando para levar-me para a escola. Levantava dali, indo arrastado pelos corredores da minha casa, vendo meu Dactar (videogame clone do Atari 2600), algumas figurinhas de futebol e meu caderno de escola fora da mochila. Peguei-o, folheei rápido, e vi minhas poesias indescobertas, os amores platônicos, os tratados de paz que escrevi e os avisos que precisava estudar mais química. Apressei-me ao olhar severo de meu pai e fui para escola. Lá vi meus amigos, minhas amigas, minhas poesias e a distância do meu eu para ser. Um olhar de uma garota, a dúvida de um menino, e muitos me pedindo conselhos. Eu os dava, e alguns amores eram resolvidos. Muitos não, os quais eram solucionados por Legião Urbana ou Roxette. Vejo tudo isso e penso em muitas coisas.

Um dia eu entrei na sala de aula e ela me colocou no tempo. Cheguei para a minha primeira turma, o professor que se apresentava ineditamente, vendo todos aqueles espectadores olhando para mim. Coloquei meu material por sob a mesa, apaguei a aula de biologia escrita no quadro, dando um aperto ao ver desmanchar a arte produzida por outro professor antes de mim. Os esquemas eram lindos, coloridos, mas tive de retirar para colocar outros. Meus esquemas eram diferentes, menos visuais e mais abstratos. Era filosofia. Deixei perguntas no lugar de respostas, e incômodos no lugar do conforto. Mas tirei sorrisos da seriedade, e chamei a loucura de normalidade, e o contrário foi verdadeiro também. Lembro de um aluno que pediu para declamar uma poesia em minha aula, algo feito por ele. Não perdi a oportunidade, visualizei o seu sentimento, e permiti que subisse no palco da educação. Ele leu o texto, o lirismo presente em seu ser, que até notei o arrepiar de sua pele, além dos olhares para a pessoa que certamente era a destinatária daqueles versos. Eu me aqueci por dentro, senti meu coração pulsar mais forte, e a alegria de ser pertencente ao lugar do conhecimento. Era mais que isso, pensei. A aula terminou, comentários surgiram, muitas perguntas também, além de abraços e despedidas. Amor, talvez. Vejo tudo isso e penso em muitas coisas.

Um dia eu entrei na sala de parto de minha esposa, e meu filho se colocou no tempo. Tudo era uma explosão de sentimentos contidos em mim. A sala era fria, mas meu corpo me aquecia, pelas sensações primeiras que estavam prestes a acontecer. Alguém viria nos visitar e ficar por muito, e muito tempo em nossa casa. As médicas, as enfermeiras, toda a equipe se harmonizou como numa orquestra para cantar a melhor música que poderiam fazer e ouvir: o choro de um recém-nascido. Fixei meus olhos no meu filho, vendo sair da maternidade de minha esposa, sendo levantado ao alto, como uma aspiração aos céus e ao melhor, e ele chorou. Pequeno e grande ele era. Eu o vi, menino, e enxerguei tudo antes de mim: o dia em que acordei na segunda-feira para o trabalho, o dia em que meu pai me apressou para a escola, minha poesia platônica escrita para alguém, o meu primeiro pisar no palco da educação como professor, e o dia lembrado por meus pais quando eu nasci. O ponto no tempo que se tangenciou ao momento que vivia, ao ver meu filho nascer, foi, também, o dia em que eu nasci: o nascimento da paternidade. Então, ali, diante do todo improvável do universo, das forças místicas, de Deus, eu pensei: ele viverá seus dias, vendo jardins, bem-te-vis cantando, senhores na padaria, bem como sentirá a dor de um amor platônico, e a concretude de um amor vivido. Viverá as perguntas dos professores, assim como também fará as suas em segredo. Discutirá contra muitos, e será entendido por poucos. Terá a sua profissão, lembrará, muito tempo depois, de como foi isso, em que momento começou, e se emocionará ao ter essa recordação. Fará tudo isso que escrevi, e muito mais, as quais ainda não consigo imaginar ou escrever. Mas será, em algumas coisas como eu fui, e outras tantas bem distintas de mim. Terá sua história, como as tem os que me leem agora. Vejo tudo isso e penso em muitas coisas.

Nascer, acordar, aprender, trabalhar, amar, são as possibilidades que a vida nos oferece quando por aqui estamos. Tudo pode ser banal, comum, ordinário, no momento em que se realiza, porém, ao ter a recordação, a consciência do que foi cada instante, essas lembranças devolvem a energia do que foi vivido e ao tempo passado regressamos novamente. Perceberá como o viver é misterioso, sim, mas entenderá como extraordinário é, os feitos realizados por nós, seja no primeiro choro ouvido pela mãe, seja na poesia platônica não correspondida, seja no abraço dado pelos pais, a nota conquistada duramente na prova de química, seja no trabalho de segunda a segunda. No eu te amo ou não amo, nas dores e na alegria, nos adeuses e nos reencontros, tudo são cenas de uma história que acontece um ato após o outro, de forma mágica. Compreenderá que a vida é esse filme de longa-metragem, onde todos os gêneros são permitidos, do drama ao cômico. Chegará a conclusão de que tudo o que aconteceu nada mais foi do que ver o tempo passar um após o outro. Verá que os minutos foram recheados de tudo aquilo que povoa sua saudade, e isso lhe dará vontade de viver de novo, de novo e de novo. Olhará o relógio, verá que os ponteiros ainda circulam, bem como o sangue em suas veias. Ouvirá a vida lá fora e aí dentro. Vestirá sua melhor roupa, tomará o café mais saboroso, escreverá de novo uma poesia que convence e amará de novo, manifestando-se ao mundo mais uma vez. Sentirá renascido, perceberá que não tem tempo perdido, e uma nova história será contada e vivida. Vejo tudo isso e penso em muitas coisas…

Nas muitas coisas que ainda podemos viver…

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