Ao passear pelo bairro Lagoa Santa, em Governador Valadares, o mais desavisado ou o forasteiro pode confundir facilmente a lagoa que dá nome à região com um campo gramado. A capa gelatinosa de cor esverdeada está cobrindo o lugar há alguns meses, levando riscos à fauna do local e incomodando bastante moradores da região.
Um dos cartões postais do bairro e também da cidade, a lagoa é um ponto onde moradores, não só da região, mas de toda cidade, se reúnem pra fazer caminhadas, praticar esportes e, antes da pandemia, até para a realização de eventos culturais.
Há cerca de quatro meses a tranquilidade e a beleza da lagoa foram afetadas por um problema em uma rede de esgoto próxima. Segundo o presidente da Associação dos Moradores do Lagoa Santa e Santo Agostinho, Tony Alves, os moradores começaram a sentir odor de esgoto e perceberam que havia um vazamento que derramava detritos na lagoa.
Tony relata que uma rede de esgoto no bairro Morada do Vale estava entupida e vazando direto na lagoa. Ele explicou que moradores registraram o fato e enviaram uma solicitação ao Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE).
“De um mês pra cá, nós começamos a correr atrás e percebemos que estava caindo um esgoto mas não era clandestino. Era uma rede de esgoto do Saae no Morada do Vale que estava sempre entupida. Com isso, ela transborda e cai num brejo e desagua na lagoa”, disse.
Ainda segundo Tony, há uma outra rede de esgoto na rua Porto Seguro, também no Lagoa Santa, que sempre está entupida e deságua na lagoa.
O presidente da associação disse que além das pessoas que usam a lagoa para caminhadas e como opções de lazer, ainda há os que pescam no local. Alguns ainda continuam a pescar, mesmo com a situação da lagoa que, em diversos pontos, está com uma cor escura, semelhante a esgoto.
“Já procuramos a prefeitura e a resposta é que existe um plano de revitalização da lagoa que está no planejamento em fase de projeto. E que será implantado em todas as lagoas da cidade. Mas a nossa questão é a urgência por causa desse esgoto que está caindo aqui. É um crime ambiental o que está acontecendo. A fauna e flora do local estão em risco”, declarou.
Atualmente, não há vazamento. Segundo o presidente da Amolasa, o Saae fez uma manutenção e desentupiu, mas o problema sempre volta. A solução, segundo ele, seria o desassoreamento de um córrego no Morada do Vale, para que as redes não fossem mais entupidas.
Procurada, a prefeitura de Valadares disse que as secretarias de Meio ambiente, Agricultura e Abastecimento (Sema) e de Obras e Serviços Urbanos (Smosu) estão executando um plano de revitalização de lagoas, iniciando pela Lagoa do Pérola. Na sequência, diz a nota, a equipe seguirá para a Lagoa do Castanheiras e, só depois, para a do bairro Lagoa Santa. Em relação ao esgoto, foi informado que o Saae realizou, na semana passada, a desobstrução da rede.
“Peixes acabando”
Um pescador de 29 anos, e que preferiu não ser identificado, frequenta o lugar desde criança e reclamou que o problema começou há cerca de 3 ou 4 meses. “Aqui sempre teve muito peixe, era tranquilo. Hoje, a gente não pesca quase nada aqui. Venho só passar tempo mesmo”, explicou o rapaz.
Para o pescador, é necessária uma limpeza na lagoa e também verificar de onde está chegando o esgoto. “Depois que fizeram esses bairros aí pra cima, está acabando com ela”, declarou.
Ainda segundo o rapaz, na lagoa costumava ter bagre africano, traíra, carpa, cascudo, entre outros. O mais comum, segundo ele, é a tilápia, que ainda é possível pescar.
Mesmo com a cianobactéria e o esgoto que já caiu na lagoa, o jovem afirmou não ter receio de consumir o pouco que ainda pesca.
Proliferação de cianobactérias
De acordo com o professor do Instituto de Ciências da Vida (ICV), da UFJF-GV, Reinaldo Duque, também biólogo, mestre em Ecologia e doutor em Botânica, trata-se de um caso clássico de bloom de cianobactérias, antigamente chamadas algas azuis.
“Esse bloom é uma reprodução descontrolada, ocupando o espaço dos corpos d’água. Ele é decorrente do processo que a gente chama de eutrofização. A eutrofização em corpos aquáticos como lagoas, lagos, reservatórios, em águas mais paradas, que a gente chama de sistemas lênticos, pode ocorrer naturalmente, mas bem lentamente”, explicou.
Corroborando o relato de moradores do Lagoa Santa, o professor disse também que a ação humana pode interferir no processo, acelerando a eutrofização (excesso de nutrientes em porções d’água) e degradação desses corpos d’água.
“Num ambiente fechado como uma lagoa em que há despejo de esgoto, há um aumento na matéria orgânica, principalmente nos teores de nitrogênio e fósforo, fornecendo condições favoráveis para a cianobactéra se espalhar e ocupar a superfície”, prosseguiu Reinaldo.
A partir daí, outros impactos podem ocorrer, como diminuir a entrada de luz, prejudicando o corpo d’água. Com isso, reduz-se a concentração de oxigênio na lagoa, podendo provocar mortes de peixes e dizimar populações de outros animais aquáticos.
Para o professor, a falta de saneamento básico na maior parte das cidades, o despejo de esgoto não tratado, tornam essa situação bem comum. “A gente vê isso acontecendo principalmente na época da seca, quando diminui a circulação de água nessas lagoas. Ela se torna um ambiente propício para esse bloom de cianobactérias”, afirmou.
Cianotoxinas
Reinaldo explicou também que no processo de eutrofização acelerado da cianobactéria, ela acaba produzindo substâncias tóxicas, que são as cianotoxinas. Elas podem ter várias ações negativas e devem ser uma preocupação constante, principalmente no sistema de tratamento de água e esgoto das cidades.
Ele explica que as cianotoxinas podem ter efeitos hepatotóxicos (ataca o fígado), dermatotóxicos (ataca a pele), citotóxicos (ataca Laas células) e neurotóxicos (ataca o sistema nervoso). O professor afirma que corpos d’água utilizados para o abastecimento devem ser vistos com maior cuidado pelo poder público.
“Não tem como acabar porque são seres que estão no planeta e têm sua importância no ciclo do carbono, do nitrogênio. Elas cumprem seu papel ecossistêmico, fazem fotossíntese, sequestram carbono… a gente tem que controlar isso e evitar os blooms e os impactos decorrentes. Em ambientes de água corrente, como os rios, isso não é tão comum mas pode ocorrer. O cuidado maior deve ser em locais onde são construídas barragens”, frisa.
Controle
Ainda de acordo com o professor, não há como eliminar as cianobactérias. “Elas precisam ser controladas. A primeira coisa é não despejar esgoto em lagoas, reservatórios, rios, cuidar do saneamento básico em geral. É atacar a raiz do problema que nós conhecemos de cor e salteado. Precisamos investir em tratamento de esgoto”, salientou.
Outra solução mais ampla, segundo Reinaldo, é pensar no manejo do ecossistema como um todo. “O manejo deve ser mais equilibrado para que se evite despejo de matéria orgânica nos cursos d’água. Toda lagoa é suscetível ao processo de eutrofização. A gente pode acelerar ou controlar, dependendo do manejo que se dá nesses ambientes”, concluiu.