Este texto não é sobre o BBB

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Este começo de ano tem sido atribulado para mim com trabalho, mestrado, atividades pessoais e por conta disso decidi não acompanhar o Big Brother Brasil. Saí de grupos de amigas no WhatsApp, silenciei palavras ligadas ao programa e os nomes dos participantes no Twitter, tudo tentando evitar me envolver demais. Bom, como você já deve imaginar, eu não obtive muito sucesso. O BBB mal havia começado e já trouxe consigo um acervo de discussões tensas e bastante problemáticas que tomaram conta da internet durante dias a fio. A maioria dessas “tretas” estavam ligadas ao participante Lucas Penteado, que é militante do movimento negro e estudantil e foi uma das lideranças das ocupações secundaristas entre 2015 e 2016, em São Paulo.

Lucas foi violentado de inúmeras formas por seus colegas de programa, os quais não citarei e nem adentrarei nas especificidades dos atritos, mas as declarações foram diversas e diziam respeito à sua atuação política fora da casa, à sua sexualidade e à sua cor. Após dias de isolamento e escracho, Lucas saiu do programa e desistiu de concorrer ao prêmio de R$ 1,5 milhão. O episódio promoveu debates intensos sobre os chamados movimentos identitários e como a dita militância identitária se coloca.

A minha intenção nesse texto não é abordar o BBB, mas aproveitar o foco nas pautas identitárias para discutir e trazer alguns pontos que considero de suma importância para compreender como esses movimentos, principalmente no que tange a cor/raça e gênero, foram mobilizados no senso comum por meio de uma perspectiva liberal, ou seja, individualizante. Junto a isso, pensar também como a esquerda, principalmente os partidos mais tradicionais do espectro, criou um certo estigma sobre os movimentos identitários a ponto de considerarem que eles são menos relevantes do que a luta de classes.

“Política identitária”, enquanto conceito e forma de luta, vem de muitos anos atrás, sendo possível colocar o seu início nos anos 70, a partir do Coletivo Combahee River, um grupo de feministas socialistas lésbicas negras de Boston, nos EUA. Em seu manifesto[1] podemos ver o seguinte: “A declaração mais genérica de nossa política atual é a de que estamos ativamente comprometidas com a luta contra a opressão racial, sexual, heterossexual e de classe; encaramos como nossa tarefa particular o desenvolvimento de análise e práticas integradas baseadas no fato de que os principais sistemas de opressão estão interligados. A síntese dessas opressões cria as condições de nossas vidas.” (grifos meus)

O que temos visto na internet e em alguns grupos identitários hoje é algo bastante diferente da política identitária Combahee River. O boom do identitarismo via mídias digitais, por volta de 2013-2015, trouxe consigo um esvaziamento contínuo da crítica ao capitalismo, com o foco nas identidades de forma individualizante, como peças de um mosaico que não se encaixam. Esse movimento condiz com a ideologia liberal que busca encapsular sujeitos em suas individualidades, impedindo uma visão coletiva em torno das identidades e, com isso, impedindo que os movimentos consigam transformar radicalmente as estruturas.

A impossibilidade de transformação do sistema via afastamento dos movimentos identitários de sua radicalidade originária é o que permite, por exemplo, que a rede Carrefour tenha tido um lucro líquido de R$ 2,758 bilhões no ano, um crescimento de 43,1% em relação a 2019[2]. Isso tudo mesmo após o assassinato de João Alberto Freitas, de 40 anos, em 19 de novembro, que foi espancado por dois seguranças brancos no estacionamento de uma unidade do Carrefour em Porto Alegre. Como forma de gerenciamento de crise, a empresa criou um Comitê Externo sobre Diversidade e Inclusão que conta com a participação de nomes muito relevantes do movimento negro, como Silvio Almeida, autor do livro Racismo Estrutural (2018).

Aqui, compartilho da opinião da jornalista, tradutora e poeta Stephanie Borges[3], a respeito da criação do comitê: “esse comitê independente serve como uma tentativa da empresa se livrar de uma crise de imagem e negócios, mas também uma maneira de um bando de pessoas brancas com poder e dinheiro se eximirem da responsabilidade por algo que não deveria acontecer de jeito nenhum”. Bom, se o comitê de fato conseguiu resolver algo e auxiliar a família de Beto é algo que ainda não sabemos, mas é evidente que a empresa obteve bastante sucesso no mercado em limpar seu nome, como os dados expostos anteriormente evidenciam.

Um outro exemplo sobre como as pautas identitárias são esvaziadas dentro do capitalismo é a adoção por Israel de uma política amigável aos movimentos LGBTs, estratégia conhecida como pinkwashing (“lavagem rosa”, em tradução livre). O termo é usado para descrever a falsa defesa dos direitos LGBTs por parte de governos e corporações privadas. No caso do governo israelense, a narrativa mobilizada é a de que o país é acolhedor e aberto, promovendo o “turismo gay” por meio de festivais e se colocando como mais próximo dos valores ocidentais em relação aos países vizinhos.

Enquanto a bandeira do arco-íris é hasteada pelo Estado de Israel, a população palestina vive sob a sombra do mastro, com um cotidiano militarizado, com a movimentação entre territórios depender de autorização formal, com a população sitiada permanecendo privada de seus meios de sobrevivência, com execuções em massa podendo ocorrer de maneira invisível, com a negação da entrada de vacinas contra a covid-19 na Faixa de Gaza.

O que quero trazer aqui a partir desses dois exemplos é a indissociabilidade dos movimentos identitários, que são antiopressão e antiexploração, da crítica ao capitalismo, ao neoliberalismo, às formas mais atuais de colonialismos/genocídios/etnocídios. E o contrário também é verdadeiro: é impossível a existência de uma luta de esquerda, que se diz anticapitalista, antiopressão e antiexploração e que não pauta as identidades com a devida seriedade. Classe, raça e gênero são partes de um todo, são um sistema unitário dentro do capitalismo, e como bem disseram as militantes do Combahee River em seu manifesto: “a síntese dessas opressões cria as condições de nossas vidas”.

Para deixar ainda mais evidente a correlação indissociável entre classe-raça-gênero no Brasil alguns dados[1] são de suma importância:

  • Pessoas de cor ou raça preta ou parda constituem a maior parte da força de trabalho no país. Em 2018 esse contingente correspondeu a 57,7 milhões de pessoas, 25,2% a mais do que a população de cor ou raça branca (46,1 milhões);
  • Em 2018, enquanto 34,6% das pessoas ocupadas de cor ou raça branca estavam em ocupações informais, entre as de cor ou raça preta ou parda esse percentual atingiu 47,3%;
  • Em 2018, o rendimento médio mensal das pessoas ocupadas brancas (R$ 2 796) foi 73,9% superior ao das pretas ou pardas (R$ 1 608);
  • Mulheres pretas ou pardas recebem menos da metade do que homens brancos (44,4%);
  • Em São Paulo e Rio de Janeiro, a chance de uma pessoa preta ou parda residir em favelas era mais do que o dobro da verificada entre as pessoas brancas;
  • A taxa de homicídios foi 16,0 entre as pessoas brancas e 43,4 entre as pretas ou pardas a cada 100 mil habitantes em 2017. Em outras palavras, uma pessoa preta ou parda tinha 2,7 vezes mais chances de ser vítima de homicídio intencional do que uma pessoa branca;
  • Em todos os grupos etários, a taxa de homicídios da população preta ou parda superou a da população branca, contudo, é preciso destacar a violência letal a que os jovens pretos ou pardos de 15 a 29 anos estão submetidos: nesse grupo, a taxa chegou a 98,5 em 2017, contra 34,0 entre os jovens brancos. Considerando os jovens pretos ou pardos do sexo masculino, a taxa, inclusive, chegou a atingir 185,0.

Os dados são chocantes e embrulham o estômago, mas demonstram melhor do que as minhas palavras ao longo do texto como a tríade classe-gênero-raça é operada como forma de manutenção da opressão-exploração dentro do sistema capitalista. Os episódios ocorridos no BBB, assim como os debates simplistas sobre as pautas identitárias dentro da esquerda, demonstram como a ideologia liberal foi capaz de esvaziar lutas coletivas que estiveram interligadas desde o seu começo, em discursos rasos e individualistas que detêm a atenção apenas sob o próprio umbigo.

[1] Manifesto do Coletivo Combahee River. Trad.: Stefania Pereira e Letícia Simões Gomes. Disponível em: < https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/159864>
[2] Carrefour: lucro salta 31% no quarto trimestre puxado pela alta das vendas <https://www.moneytimes.com.br/carrefour-lucro-liquido-salta-31-no-quarto-trimestre-com-alta-das-vendas/>
[3] As demais declarações de Stephanie Borges podem ser conferidas aqui: <https://twitter.com/stephieborges/status/1331981843353178112>
[4] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2019. (Informação Demográfica e Socioeconômica, 41).

 

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do O Olhar.

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