Narciso acha feio o que não é espelho: reflexões sobre o masculinismo na invasão ao Capitólio e as suas ligações com o bolsonarismo

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No último dia 6 de janeiro,  apoiadores de Donald Trump invadiram o Capitólio, sede do Congresso dos EUA, durante a contagem de votos do Colégio Eleitoral que certificaria a vitória de Joe Biden como presidente.

Os invasores, estimulados por Trump desde o período eleitoral com suas afirmações de que o processo era uma fraude e de que não aceitaria a derrota, interromperam a sessão e depredaram o prédio e gabinetes.

Durante toda a quarta e os dias posteriores o assunto esteve em alta. Afinal, como o país que se autointitula como a maior democracia do mundo pôde passar por uma situação dessas?

Para além de toda a situação muito inédita nos EUA, um indivíduo em especial se destacou: um homem branco, tatuado, com o peito nu, rosto pintado com as cores da bandeira dos EUA e a cabeça envolta por uma manta de pelos de búfalo e chifres negros.

Jake Angeli é conhecido como divulgador das ideias da extrema-direita e um dos porta-vozes do QAnon, um movimento construído sob teorias conspiratórias e que, desde 2017, está presente na internet, mas com maior difusão no último ano em meio à pandemia.

O QAnon, para uma rápida explicação, é um movimento conspiratório que agrega usuários com interesses ligados a movimentos pró-Trump, antivacina, antiglobalismo, anticorrupção e contra a pedofilia, apenas para citar algumas de suas muitas vertentes.

Voltemos a Angeli e a sua indumentária que rendeu discussões intensas no Twitter a respeito de apropriação cultural: seria viking ou seria indígena? Acompanhando os debates fico com a narrativa de que tem dos dois.

A manta de pelos de búfalo com chifres é uma apropriação de um adereço indígena dos Sioux, que era utilizado por guerreiros.

As tatuagens de Angeli, como alguns perfis apontaram na rede, têm associação direta com a cultura nórdica ou com os vikings, narrativa que já é bastante utilizada por homens de extrema-direita pautando a supremacia racial branca e a masculinidade.

Fato é que o uso de tais elementos não é por acaso, como bem apontou a socióloga Sabrina Fernandes.[1] É um uso intencional, com objetivo de agredir, esvaziar, confundir e politizar. É parte de uma prática etnocida e de estratégia fascista.

Jake Angeli na invasão do Capitólio. Foto: Getty Images

A escolha de Angeli pela indumentária também revela uma outra narrativa muito presente nas alt-rights que é o culto ao masculinismo.

Uma análise simples da maneira pela qual ele se vestiu já traz elementos suficientes para perceber que houve uma intencionalidade.

O torso nu com o uso de um adereço ligado a guerreiros e o rosto pintado transmitem a imagem de um combatente, um homem que está disposto a lutar por um ideal.

Angeli carregava consigo um mastro com a bandeira dos EUA e uma flecha em sua ponta, essa era a sua arma, além de um megafone. Uma de suas fotos que viralizou e se tornou capa de notícias foi tirada no momento em que ele gritava, com os olhos fechados e as veias do pescoço altas.

Além disso, voltou a circular um vídeo do mesmo homem, de maio de 2020, em uma movimentação de apoiadores de Trump, em Phoenix.

No vídeo, ele utiliza a mesma indumentária do dia da invasão ao Capitólio e bate em uma superfície parecida com uma placa que serve como um tambor para iniciar seus gritos de agradecimento a Trump e ao Q, em referência ao QAnon.

Novamente, Angeli invoca uma imagem de guerreiro, exacerbando a sua virilidade e ecoando seu apoio fascista na forma de berros.

A figura do guerreiro disposto a lutar por uma causa ou liderança também está presente na apropriação dos cavaleiros templários pela extrema-direita brasileira.

Esse consumo e produção de medievalismos via cavaleiros templários ficam explícitos em um vídeo publicado em março do ano passado, no canal da associação conservadora Lux Brasil, em que um homem vestido de cavaleiro e montado em um cavalo, carrega a bandeira do Brasil e convoca os patriotas para as manifestações de 15 de março “contra os comunistas e traidores da pátria” e, obviamente, em defesa do presidente Jair Bolsonaro.

O vídeo é jocoso, com zoom e edições toscas, estilo típico da propaganda bolsonarista. Atrelado aos templários, está o uso da expressão em latim Deus vult, que significa “Deus quer”, e faz referência à Primeira Cruzada, proclamada pelo papa Urbano II, em 1095.

O historiador Paulo Pachá já escreveu um artigo a respeito dos usos do medievalismo pela extrema-direita e ressalta que esse discurso envolve uma série de preconceitos, como racismo, homofobia, machismo e islamofobia: “Essa Idade Média aparece como um passado idealizado por esses grupos, onde você teria uma sociedade que é majoritariamente, se não exclusivamente, branca, cristã e patriarcal”.[2]

A figura do templário também é frequentemente utilizada pelo “influenciador” e youtuber “anarcocapitalista”, Paulo Kogos.[3]

Segundo ele, os “templários tinham por princípio a defesa da fé, dos fracos, dos pobres, da Justiça e do bem”.

Kogos se inspira na Idade Média e no cristianismo e escolheu o celibato por considerar que fazer sexo antes do casamento é “um pecado grave”.

O posicionamento do youtuber em relação ao sexo me recorda do terrorista misógino do massacre de Isla Vista, ocorrido em 2014, em que um jovem de 22 anos assassinou seis pessoas e deixou outras tantas feridas.

Na sua autobiografia, publicada online no dia do massacre, o rapaz comenta sobre a vez em que comprou a sua primeira arma: “[…] tive uma sensação nova de poder. Agora estava armado. Quem é o macho alfa agora, suas vagabundas? disse comigo mesmo, pensando em todas as garotas que tinham me desprezado”.

O foco do assassino era, principalmente, as mulheres que um dia o desprezaram e os homens com os quais elas se relacionavam.

É a típica figura dos “incels”, os celibatários involuntários, que frequentem fóruns online, como 4chan e Reddit, e que têm como inimigas as mulheres, mas também são extremamente racistas e xenófobos.

No Brasil, a perseguição e as ameaças sofridas pela militante feminista Lola Aronovich partiram justamente de incels.

Essa misoginia quando ainda mais extremada se converge no tribalismo masculino ou masculinismo, estudado pela antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, que pauta o ódio às mulheres ao tratá-las como objetos para a reprodução humana e objeto de caça.

O grande nome do movimento, Jack Donovan, considera a heterossexualidade e a família nuclear tradicional como degenerações por incluírem mulheres. Por isso, ele só se relaciona com homens, inclusive sexualmente, mas repudia a “cultura gay”.

Pinheiro destaca que ele “se coloca como um ‘evolucionista’, reivindicando a volta a um passado em que a mulher teria uma função apenas reprodutiva, e as relações sexuais entre os homens seriam as desejadas. Mulheres são meros troféus da bravura desses guerreiros”.

Todos esses episódios citados, apesar de suas diferenças teóricas e temporais visíveis, têm uma base comum: o ódio às mulheres.

A misoginia de Donovan é uma caricatura das ideias da extrema-direita mundial, principalmente de Trump e de Bolsonaro que dispensam a citação de exemplos de declarações e atitudes misóginas, já que o espaço aqui é curto demais para isso.

Alguns fatores, porém, são interessantes de explicitação, como o desejo alucinado por armas.  A política de armamento defendida por Bolsonaro e por seus filhos e apoiadores pode ser entendida dentro dessa necessidade de colocar-se como macho alfa, como fez o assassino de Isla Vita.

Portar uma arma é a transposição da virilidade para um objeto falocêntrico, é a alimentação de uma identidade de fantasia e de domínio do sonho machista de ser o macho alfa. As armas são totens identitários, como bem observou a historiadora Rebecca Solnit.

O apreço ao militarismo como uma produção de uma identidade realmente masculina e afastada do “mundo feminilizado” é outro traço de transferência libidinal de homens conservadores que se sentem ameaçados e castrados pelo avanço, ainda que bastante restrito, de pautas feministas.

O bolsonarismo é um pacto narcísico pautado em pânico moral via “kit gay”, “mamadeira de piroca” e “golden shower”, em que homens heterossexuais e padronizados se amam, se exaltam e se admiram.

As mulheres, como discute Simone de Beavouir, são o “outro”, seres caracterizados pela ausência de existência, o “inessencial” e passível de descarte.

Já os homens são a expressão máxima do ser. Jake Angeli, o masculinista do Capitólio, já existe entre nós: somos governadas por eles.

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do O Olhar.

 

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