Tristeza não tem fim. Felicidade sim. – Tom Jobim
Restou a tristeza de uma praça vazia. A vigésima primeira edição do Valadares Jazz Festival, segundo o seu organizador, deveria ter ocorrido em 2020. Infelizmente, a peste impediu a realização do evento que é um dos mais aguardados do calendário cultural da cidade.
A verdade é que a pandemia nos enfurnou em precários espaços de entretenimento, nos quais nossas residências se transformaram, no contexto da ameaça causada por um vírus incansável, que segue ceifando vidas apesar do significativo avanço da imunização pela vacinação.
Mas apesar dele, amanhã há de ser outro dia. Poderia ter sido esse o slogan do “espetáculo da música” dedicado a George Gerhwin.
Diria ainda que, a metáfora mais representativa dessa síntese foi produzida pela dinâmica do próprio evento, ao longo das atrações que fizeram a transição da segunda para a terceira noite.
Quando o espetacular Hamilton de Holanda sucedeu o chorinho de Dudu Maia, a tristeza, em seu sentido estético – por assim dizer –, tomou conta de vez do ambiente.
Um comentário de um amigo, carregado de bom humor, foi bastante preciso na caracterização da profundidade do som: “dá vontade de rasgar os pulsos”. Sua sensibilidade perspicaz tem bastante fundamento:
“O choro, para mim muito mais uma forma de tocar do que um gênero musical específico, mesclou três influências decisivas: as valsas e outras danças europeias de salão, notadamente a polca em sua estrutura melódica harmônica, o ritmo da música africana e a melancolia no tratamento da interpretação, com raízes em nossa humilde música indígena. As três raças tristes se fundiram no corpo do choro.” – Maurício Carrilho em: O Universo do Chorinho.
Como se pudéssemos avançar imediatamente, de uma época triste à redenção, no dia seguinte, João Gaspar fez do amanhã um outro dia. Infernizou o lugar com a beleza do som de sua guitarra nervosa e limpa. A sensação foi de alívio e esperança.
Justamente essa indeterminação, essa capacidade de tanto expressar sem necessariamente algo dizer, é que faz com que muitos tenham a música instrumental como a materialização da música que carrega consigo um maior potencial emancipador.
Entretanto, lamentavelmente, a vida não imita a arte. É, ainda, muito evidente que há muita gente insana. Aqui, para não dizer dos outros, falarei de mim mesmo: reencontrei, durante a festa, aquele sintoma que os psicólogos chamam de timidez situacional, que há muito não me incomodava.
Fui incapaz de transpor uma plateia cheia para estar em uma posição mais privilegiada para assistir aos shows. Fiquei muito feliz em rever a organização de filas para a compra de bebidas, bem como, a circulação das pessoas, tão comum nos eventos que ocorriam na Praça dos Pioneiros.
Porém, também experimentei certo desconforto. Não por insegurança, até porque, a necessidade de policiamento parecia ser nula, provando para as autoridades que a violência só vira espetáculo onde faltam arte e cultura.
Dias antes do festival, até busquei preparar-me a partir da última sessão de tratamento psicanalítico que participei.
Contudo, na tarefa de refletir sobre o novo modus operandi que o contexto de nossas vidas passa a nos exigir a cada circunstância, não fui capaz de antever o impacto, o choque brusco que significou o voltar a estar imerso, após tanto tempo, em uma socialização que de nós tanto exige, como é o caso da festa:
“A festa é uma produção do cotidiano, uma ação coletiva, que se dá num tempo e lugar definido e especial, implicando a concentração de afetos e emoções em torno de um objeto que é celebrado e comemorado e cujo produto principal é a simbolização da unidade dos participantes na esfera de uma determinada identidade.” – Norberto Luiz Guarinello em: Festa, trabalho e cotidiano.
Considero importante destacar tal dimensão do festival de jazz, pensado enquanto festa realizada em praça pública, pois isto o aproxima das mais belas e complexas características carnavalescas, ou de um mercado público: há espaço para todos os nichos.
Isso aniquila o conforto que as redes sociais virtuais nos possibilitam usufruir enquanto permanecemos isolados nos condomínios da vida, principalmente durante o período em que a doença assolava os quatro cantos do mundo.
Ao congregar, mesmo que sem conciliar, desde moradores de rua a universitários, vendedores ambulantes, membros das famílias tradicionais valadarenses, trabalhadores pobres e os não tão pobres, enfim; esse seu caráter faz do chão da praça mais importante da cidade, palco não só da música, mas de um exercício coletivo de alteridade.
A questão para a qual chamo atenção, está no fato deste exercício ocorrer como ocorreu, ou seja, em meio às condições de um primeiro evento teste da área cultural de Governador Valadares, quer dizer, nos moldes de um experimento social.
Não é necessário ser um especialista para notar o déficit em nossa comunicação verbal para com o outro, bem como, a redução da nossa capacidade de comunicação não-verbal.
Desaprendemos, nesse tempo pandêmico, as poucas habilidades sociais que restaram de uma sociabilidade cada vez mais ditada por estímulos virtuais.
Notem: ao passo que foi necessário ficarmos mais conectados às redes que, ironicamente, são denominadas de “sociais”, praticando aquela pedagogia dos likes, mesmo assim, as nossas habilidades sociais sofreram uma grave redução.
Permitam-me uma analogia, fruto de um diálogo que desenvolvi durante esses dias com uma mestra (assim chamo, carinhosamente, os educadores que me influenciam), motivado pela sua crítica “ao fetiche no sexo, em que muito se fala sobre, mas pouco se faz”.
Como pode haver tamanhas contradições, professora?
“Esse refúgio nas telas, aliás, tem sido a marca desta algorocracia, apoiada na radicalização de um elemento constituinte do capitalismo – seu aspecto genuinamente ilusório, fantasioso, que vai da mercadoria ao capital fictício. […] Ao mesmo tempo em que tudo se prova, pois de tudo se tem imagem, tudo se nega, pois toda imagem pode ser uma seleção manipulada e manipuladora.” – Clarisse Gurgel, em: Uma Noite Que Nunca Chega.
Lembro-me também, que, de lá do espaço, ou melhor, do território de onde prestigiávamos as apresentações, na área externa gramada da parte não controlada da praça, boquiaberto – na verdade, “de cara”, para usar uma expressão mais fidedigna – visualizei a performance daqueles que, corajosamente, nos dois shows cujas vibrações aproximaram-se do estilo soul, arriscaram-se a dançar no curto espaço que separava a plateia dos artistas.
Muito feliz fiquei, pois, para mim, observador que sou, independente da intenção das pessoas que o executaram, este ato soou como uma tentativa de preencher o vazio deixado pela ausência daquela moradora de rua que, sozinha, abrilhantou o Valadares Jazz Festival durante esses anos em que ele foi realizado na praça, dada a falta do Teatro Atiaia.
Inclusive, que a cidade volte a tê-lo, mas que o festival permaneça na praça, e, principalmente, que a moradora de rua dançarina logo possa retornar, pois, afinal, “o jazz é sobre a alma humana, não sobre aparência”. […] O jazz, em particular, é uma linguagem universal que representa a liberdade, por causa de suas raízes na escravidão“.
Retomando a referida cena: ela, ao despertar-me também incômodo, por eu sequer conseguir, ainda, sentir-me confortável em meio às luzes, diante de mínima evidência, possibilitou-me constatar que, de fato, precisamos, urgentemente, cicatrizar os ferimentos do distanciamento físico e social.
Existe uma justa e necessária preocupação com a segurança sanitária. Ainda assim, a meu juízo, faz-se também necessário sacudirmos isso de nós. Assim como fazemos quando o nosso corpo é tomado pelo excesso de água após um mergulho.
Não se trata de sair por aí, encharcado, atropelando o seu tempo, sem considerar que há muito a ser feito para estarmos completamente secos. Mas se quisermos ser felizes, na medida do possível, e no tempo que nos foi dado, esse é um passo a se pensar.
Que ele seja dado com responsabilidade e em praça pública, como na última edição do Valadares Jazz Festival. Vida longa ao dito cujo!