Destino [do livro O Jardineiro]

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Imagem: Divulgação

Hoje compartilho com vocês Destino, conto que escrevi e publiquei no livro O Jardineiro, publicado e distribuído pela Editora Viseu e Amazon. Espero que gostem.

Segue a leitura.

Destino

Olhei para o relógio do computador e vi que já eram quase quatro horas da tarde. Fim de ano e expediente, muita ansiedade por novos acontecimentos e conquistas no próximo ano. Promessas, esforços, toda aquela rotina de esperança começava a se mobilizar naquele verão de tantas memórias. Sim, estava um pouco nostálgica neste fim de tarde.

Não sou de escrever diários. Minhas amigas sempre o fizeram, mas sem qualquer propósito. Eu sabia de todos os segredos copiosamente escritos dia a dia. Decepções, brigas de família, gravidez inesperada, chefes e maridos insensíveis, o que era registrado nos papeis em minha memória também era feito.

Não gosto de diário. Eles me entregam uma sensação de saudade a qual não posso conter. Não consigo controlar minhas lembranças. Já tentei. Saudade não fica na mente. Fica no coração, lugar apertado.

Tenho uma família muito bonita e me orgulho dela. Tenho dois filhos e um ótimo marido. Minhas crianças já saíram de casa. Não casaram ainda, mas foram atrás do futuro, estudar. Meu marido trabalha com produção de enzimas sintéticas. Ele é um executivo de uma grande empresa do ramo da bioengenharia. Ele descobriu uma substância que é capaz de produzir celulose em um alto volume. Apesar dos tempos da eletrônica, o papel é muito necessário. Amo meu esposo.

É o que eu ouço depois de tantas brigas.

A mulher não é misteriosa como pensam os homens. Temos segredos, é verdade, mas todos eles se dissolvem, como uma bolha de sabão, ao ouvir um pedido de desculpas, ao ter um abraço ou, simplesmente escutar: eu amo você.

E tenho meu trabalho. Logo em minha juventude consegui um bom emprego o que me deu uma boa sustentabilidade na vida. Quanto a isso não posso reclamar. Claro, no trabalho, tem sempre alguém com quem não combinamos muito bem. Mas tudo é superado com um bom convívio. Não posso reclamar.

Tenho vontade de conhecer Paris. Estou planejando esta viagem desde a juventude. Adoro tudo que diz respeito à França. Os queijos, os vinhos, a Cidade Luz, os perfumes e, o melhor, o ar romântico da cidade.

Uma saudade. Doce saudade.

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Imagem: Divulgação

Tenho que me controlar porque não vou conseguir terminar este desabafo. Tive de coletar muita coragem para falar o que tenho agora para dizer. Muitos anos guardei um segredo e ele, um dia, foi revelado. Pensei que jamais sentiria isto novamente, mas aconteceu. Minha culpa. Minha culpa.

– Não é sua culpa, princesa.

Sempre fui muito católica. Acredito que devemos praticar o bem, não causar sofrimento, ajudar as pessoas. Vou a Igreja, casei nela, e meus filhos cresceram com estes valores. Não me arrependo. Voltar-se para Deus foi uma forma de controlar meus sentimentos, as lembranças das quais falei. Fui um fogo controlado. Pelo menos não causei dor.

– Sou uma mulher casada! – afirmava para mim mesma por muito tempo.

A vida tem muitas regras. Desde criança, pais e filhos convivem um ambiente de normas, o que deve ser feito e não feito. Ainda na juventude, tentamos violar as regras que nossos pais impuseram. Mas estas são inocentes. É a sociedade que nos apresenta as verdadeiras regras, aquelas que nos causam dor, as que nos aprisionam. Para sempre.

Sou muito feliz no meu casamento, não posso reclamar. É claro que casamento é uma regra que não admite exceção, deve ser seguida. Muitos vasos são quebrados. Alguns reconstruídos. Mas, ainda assim, sou feliz no meu casamento.

– Lembrança vai embora, eu peço, meu Deus.

Estas delicadezas do namoro, no casamento, em algum momento acabam desaparecendo. Tentei inventar outras, sendo e tentando ser engraçada, criativa, mas nada deu certo. Uma crise se instalou. Qual mulher não passa por isso? A beleza da paixão cede espaço à frieza da rotina. Contas, projetos, acusações são os elementos que substituem a entrega, a surpresa e as confidências. Nas duas situações eu chorei. Em uma sou feliz. Na outra sou amada.

– O meu controle fez com que me tornasse uma mulher forte.

Uma vez li um livro sobre o amor. O texto tentou convencer de que o amor pode ter raízes em fontes mais profundas, como um amor na infância, um tempo da faculdade, e até vidas passadas. Ridículo tudo isso. Sou bem prática e real. Amor é convivência, dia a dia, respeito recíproco, família. Estas coisas de sonhador eu deixo para a literatura.

Não significa que eu sempre fui assim. Já fui criança e jovem e neste tempo é permitido tolices suaves ao coração. Depois de uma certa caminhada, os pés ficam calejados e conhecedor dos caminhos. Prefiro os atalhos que me levam a tranquilidade, já que a felicidade é um lugar distante.

Eu me acho divertida, não deixo ninguém quieto. A todo o momento gosto de implicar com as pessoas. Só as fracas que caem em minhas provocações. Pensei que com o tempo perderia isto, mas foi justamente ao contrário: hoje ainda tenho uma língua afiada que chega, em algum momento, a ferir alguns. Feri muita gente e não me arrependo. Foi merecido.

– Não poderia ter dito isto a você: me perdoa.

Não gosto de filosofia, mas tem coisas que uma mulher deve saber: ela controla os homens. Está até no texto sagrado, o que diga Adão. Mas eu não gosto de homens que ficam aí se rastejando, implorando afeto, tentando ser sensível. Gosto do impossível, apesar de não admitir. Um homem deve ser ele mesmo: se for grosso que continue grosso, se for educado que continue educado, se for fiel que continue fiel. Mulher ama o Homem. A mulher escolhe quem vai amá-la.

– Não me peça novamente para eu dizer eu te amo.

Tentei ensinar estas coisas aos meus filhos. Mas os filhos nem sempre ouvem os pais. Eu não ouvi minha mãe e ela me disse para fazer o que me faria feliz. Não tive coragem. Sim, tenho medo. Sou humana. Sabe não me arrependo e, talvez, meus filhos também não se arrependerão. Também o que vou ensinar?

– Eu teria aprendido com você. Fui covarde.

Então hoje sou uma mulher realizada. Tenho meus filhos, meu trabalho, meu marido e minha família. Tudo isso é riqueza. Só não sei se entrarei no reino dos céus.

Curioso eu pensar estas coisas por estes dias. Então, como dizia, estava saindo do trabalho e pensando na vida e na minha viagem futura a Paris. Depois dessas pequenas  confidências, já que não sou muito de confessar, vi uma coisa que me remontou ao passado. Caminhando pelas ruas sem qualquer pretensão vejo uma notícia na internet. Na verdade não uma notícia, mas um evento, em um dia próximo, acho que no fim de março. Uma palestra. Uma psicóloga.

Detesto psicologia, acho que todos psicólogos enganam. Claro, isto que digo não tem o menor fundamento. Mas mesmo assim não me importo. Não conseguiria ficar em um divã falando para uma desconhecida o que eu sinto. Nem pra mim falo às vezes. E muito mais hoje em que sinto mais tranquilo e com autocontrole. Sou uma mulher forte.

– Só não consigo ser forte com você.

Mas a tal palestra chamou a minha atenção. A psicóloga havia escrito um livro que estava revolucionando o comportamento humano. Sim, era sobre o amor. Não sou piegas e detesto o amor teórico. Gosto de realidade e não de sonhar. Mas alguma coisa misteriosamente estranha chamou a atenção neste livro e na psicóloga. O que eu não consigo explicar tento entender. Vou à palestra;

Tentei chamar minha irmã, mas ela não quis ir. Também, minha irmã com psicólogos seria muito pior do que eu. Eu pelo menos controlo. Já minha irmã é um caso extraordinário. Apesar de minha irmã ser a mais velha, eu, a caçula, sempre cuidou dela. Coisas da vida.

– Mas eu disse a você sobre a felicidade. Eu, sua irmã.

Quando parecia que eu iria sozinha uma surpresa agradável me aconteceu. Minha mãe disse que viria até minha cidade e passaria uns dias comigo em casa. Fiquei tão feliz. Eu amo minha mãe. No colo dela eu ainda sonho. Só não conto para ninguém. Ela sabe das minhas dores, todas elas, do meu sofrimento, do meu choro. Ela é a única que poderia me salvar. E ela me salvou. Ela disse o que eu queria ouvir. Eu não ouvi o conselho dela.

– Coragem? Se for isto que falta para ser feliz, por que não?

A psicóloga é jovem, aparenta ter uns trinta anos. Já escreveu vários livros, tem mestrado em psicanálise e é defensora da inteligência emocional. Ainda não é casada, não tem filhos e acho que tem um namorado. Sim, sou muito curiosa. Como vou aprender sobre o amor de alguém que ainda não o viveu. Preciso entender.

O passado desta psicóloga só vejo estudos. Ela parece ser uma pessoa com muito talento. Fala bem, gosta de artes, música, e é sensível. Ela sempre chora nas palestras. Será que ela vai me convencer. Acredito que não. Como sou teimosa.

– Você é teimosa, mas eu te amo.

– Vamos mãe, não quero atrasar.

– Sim, estou pronta.

Então chegou o dia. Este dia mudou minha vida para sempre. Fui como uma mulher forte mas voltei com um sonho. Fui como uma mulher realizada no casamento, mas voltei apaixonada. Fui com todas as minhas riquezas. Voltei com um coração acelerado. Voltei a chorar naquele dia. E espero que seja de alegria desta vez.

– Vou falar sobre o amor. Amor é juntamente com Deus as palavras mais antigas da humanidade. Não se sabe qual foi pronunciada primeiro, mas, certamente, o ato de amor veio primeiro ao ato de Deus. Até mesmo Jesus, em seus textos, diz ser o amor o maior mandamento e supera tudo. Mas o amor é incondicional, não precisa ser explicado. Amor não tem medida. Amor não é apego. Isto é paixão. Não existe nada no mundo e no universo sem amor. Não se constrói nada sólido e eterno sem amor. Pode-se viver uma vida sem amor. Não se tem felicidade sem amor. O amor é simples, não encontra razão na beleza dos prazeres. Ele é o prazer espontâneo. Um sorriso sem motivo. Um coração acelerado sem acontecimento. São lágrimas de alegria. Tento dizer a todos que não se pode permitir a prender a coisas que não o amor. Dinheiro vai e vem. Poder vai e vem. Carreira vai e vem. Amor é uma vez. Todo o resto são argumentos para a vida feliz. Vive-se bem assim também, não se enganem. A realidade é uma zona de conforto. Mas só quem sonha alcança o céu.

– Besteira!

– O que foi filha, está com raiva?

– Esta mulher não sabe de nada. Ela tem trinta anos, jovem, bonita, inteligente, só por isso acha que sabe sobre o amor?

– Você não sabia quando tinha trinta anos?

– Mãe, pode parar aí. Não quero tocar mais neste assunto.

– Conheço você, teimosa. Você deveria ter feito aquilo.

– Mãe! Está louca! Eu tinha um casamento, tinha vocês, não poderia magoar ninguém.

– E você poderia magoar a si própria?

– Mãe, já falei, para com isso.

– Não, nada disso, você deveria ter amado. E eu nem conheço este segredo, mas deveria ter amado. Você tinha e sempre teve o meu apoio.

– Sou feliz mãe, tenho minhas coisas.

– Não, você não tem. O que você quer guardou muito bem. Um presente muito bem fechado. Você não brincou com ele.

– Não sou de brincar com as pessoas.

– E permitiu que o destino brincasse com você? O que espera? Ter outra vida? Nascer de novo? Olho seus olhos a tempo, minha filha, e vejo lágrimas. E por que? Por que não teve coragem? Por que não queria ferir ninguém? Eu no seu lugar teria ido embora. Mas não fui porque seu pai era o amor da minha vida. E você? Quem é o amor da sua vida?

Minha mãe me tirou do sério. Disse que aquele dia foi diferente. Sai dali do auditório e a deixei sozinha. Fui me recompor porque a tempestade estava se aproximando. Como fui tola! Deveria ter me arriscado. Não o fiz. E ouvi dele e de minha mãe, mesmo nenhum sabendo um do outro, para ser feliz. Escolhi a felicidade comedida, controlada. Não tenho frustrações por isso. Mas dói lembrar. E ele me faz lembrar até hoje.

– Não esqueça que eu amo você.

Era o intervalo da palestra. Por estas coincidências do destino, corri um pouco mais para não perder o próximo ato. Mas como algo suavemente doce, desci rapidamente as escadarias e, no lance furtivo, encontrei com a palestrante. Muito bonita e educada, perguntou se eu precisava de alguma coisa. Ela notou alguma lágrima em mim e ofereceu um abraço sem eu pedir. Sentei ali na escada e desatei a chorar. Fui uma criança. Todas as lembranças retornaram. A palestrante ali na minha frente, jovem, feliz e um rosto parecido. Não conseguia me controlar. Foi então que ela me interpelou.

– O que a senhora tem? Parece estar com o coração apertado. O que lhe falta, senhora?

– Sem nomes, por favor. – sim, fui um pouco rude.

– Tudo bem, o meu é Ana Laura.

– Sei, estou aqui ouvindo você. Sua palestra é boa. – quanta mentira.

– Talvez precise falar um pouco, desabafar.

– Não falo com estranhas. – Agora, fui estúpida.

– Eu sei e a senhora está certa. Mas meu pai disse uma vez que temos de ser felizes. E é isto que me move.

– Seu pai é um idiota, um imbecil. Deve ser um sonhador bobo.  – Agora fiquei muito nervosa.

– Sim, deve ser tudo isso. Ele passou por muita coisa na vida. Teve muitas derrotas. E hoje, mesmo sozinho, ele continua idiota. – a palestrante riu e apontou em direção a um homem. Fiquei um tempo ali enxugando as lágrimas, tentando entender tudo. Como não acreditava em coincidências, surpresas, coisas da vida e, enfim, destino, tive de admitir: o destino aconteceu.

– Você!

– Sim, meu amor. Sou eu.

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