Eu cresci ouvindo meu pai repetindo a frase: “quer conhecer uma pessoa, come um quilo de sal com ela”. A cada decepção, frustração com amigos, com conhecidos e familiares, lá estava ele mencionando o ditado. Confesso que não compreendia bem o sentido daquilo. Até imaginava, ao ouvir o ditado, duas pessoas em uma mesa de jantar, uma vasilha com um quilo de sal e cada uma com uma colher comendo.
Mais tarde pude perceber que se tratava de uma metáfora alusiva ao tempo de convivência. O sal, pra ser ingerido, precisa ser em pequenas doses, do contrário se torna intragável. Comer um quilo em pequenas doses leva meses e até anos. Para conhecer alguém é preciso convivência diária e intensa. Essa convivência, sob o mesmo teto, é capaz de fazer com que as pessoas se revelem. Só assim vamos conhecer aspectos da personalidade de alguém. Vamos conhecer a índole, caráter e personalidade.
Esse ano que passou foi, nesses meus 50 anos, de longe o mais formidável. O ano de 2020 conseguiu ser o pior e o melhor ano da minha vida. Foi o ano em que fomos acometidos por um vírus que se propaga por meio de gotículas no ar. Muito pior que o HIV cuja forma de contágio necessita de contato físico mais íntimo. Esse vírus, o Covid-19, nos impede de abraçar, beijar e pior: ficar próximo das pessoas respirando o mesmo ar.
O distanciamento social veio como um castigo, o uso da máscara uma punição.
Entretanto, no nosso isolamento, convivemos mais com nossos filhos. Filhos com pais. Irmãos com irmãos e, claro, com nossos cônjuges. Foi o tempo de cuidar mais das plantas e dos jardins, de fazer pequenos reparos na casa, de trocar uma fechadura há tempo com defeito ou uma lâmpada queimada.
Também sobrou tempo para dividir as tarefas domésticas, como a limpeza da casa, banheiro e cozinha. Aliás, foi na cozinha que passamos a demonstrar os dotes preparando pratos especiais. Foi o ano em que nos reativamos nossa capacidade de dialogar.
Mais do que isso: tornamo-nos resilientes, mais perseverantes e mais espirituais. Foi o ano em que aprendemos a viver um dia de cada vez, a resolver problemas na medida em que eles aparecem, a lidar com frustrações. Em geral, muitas pessoas passaram a valorizar os pequenos momentos no dia a dia e a serem gratas pelas conquistas, ainda que singelas. Que é preciso valorizar os afetos, os amigos e ter paciência pra aceitar aquilo que não podemos mudar.
Cuidar da saúde mental nesse processo foi crucial para sobreviver. Percebemos o quanto é necessário exercitar a paciência e a rever algumas relações tóxicas. Comendo o tal saco de sal constatamos quem é, de fato, importante e assim conectamos mais com a espiritualidade, cuidando mais da saúde física e mental.
As controvérsias sobre ter ou não isolamento, abrir ou fechar o comércio, pagar ou não o auxilio emergencial, tomar ou não a vacina também serviu pra gente conhecer um pouco mais sobre o preço de um voto equivocado. Ao mesmo tempo identificamos quem pensa individual e quem pensa coletivo.
Também foi nesse período que passamos a produzir mais cultura, sobrou mais tempo para criar, escrever, pintar, produzir e assimilar. Entramos definitivamente na era das lives. As musicais em grande maioria, mas também de fruição cultural.
A Antropologia foi uma das maneiras mais proveitosas para compreender isso tudo. O antropólogo francês François Laplantine nos apresenta duas perspectivas: A análise do desenvolvimento permite uma compreensão melhor de suas características específicas; em seguida, apresenta as tendências contemporâneas e, finalmente, um panorama dos problemas colocados pela prática e por suas possibilidades de aplicação.
A Antropologia Cultural converge para as pesquisas linguísticas, especialmente para as teorias de Ferdinand Saussure, no que se refere à língua, e de Charles Sanders Pierce, em relação à imagem. Deste ponto de encontro nascem também a Antropologia Oral e a Antropologia Visual.
Os dois últimos filmes da franquia Vingadores mereceram, de minha parte, uma análise bem metafórica. Eu me senti no universo Marvel, na medida em que amigos e vizinhos, acometidos pelo vírus, iam desaparecendo. A minha cidade, Governador Valadares, leste de Minas Gerais, tem pouco mais de 300 mil habitantes e o número de mortos supera 500 vítimas, com um aumento de 300%.
Thanos, o vilão cujo nome significa morte, revela que sua missão é trazer equilíbrio ao universo, exterminando metade dos seres vivos do planeta. Uma ideologia que vai muito além da ficção.
O enredo do filme não nos fornece informações sobre os critérios utilizados para cumprir o seu propósito. Thanus precisa adquirir as jóias do infinito para cumprir seu objetivo. Para tanto, ele destruirá todos que se colocarem no seu caminho, e não vacila nem mesmo quando precisa sacrificar sua filha para adquirir a joia da alma e torturar a outra para obter informações sobre o plano dos vingadores. É um ser determinado a atingir seus objetivos, não importam os meios. Ele não esboça nenhuma emoção, não demonstra nenhum traço de misericórdia ou simpatia e vê a si mesmo como o inevitável.
Ao ser combatido pelos vingadores, ele revela que sentirá prazer em destruir, não só a metade, mas todo o universo. Felizmente, ele não consegue realizar a sua missão, para o bem de todos.
Imagine por um instante que você detém a manopla do infinito e que com apenas um estalar de dedos você pudesse destruir todo o universo ou apenas a metade dos seres vivos. Que critérios utilizaria para fazer a escolha de quem morreria e quem viveria? Pode ser que grande parte dos seres humanos se recusaria a ter que tomar essa decisão, considerando o peso das implicações éticas envolvidas.
Mas penso que infelizmente sempre existirão aqueles que não pensarão duas vezes em fazer uso da manopla e estalar os dedos. Se por um lado nos conforta saber que a manopla do infinito é um objeto fictício, por outro é revoltante perceber que existem seres humanos que, se pudessem, a tornariam realidade.
A manopla do infinito é fictícia, mas a caneta dos poderosos que assinam com rapidez quase igual a de um estalar de dedos é real. Caneta real dos parlamentares que assinam leis injustas. Caneta dos juízes que proferem sentenças injustas, dos ministros que cortam verbas de setores essenciais.
Caneta real que autoriza a farra dos poderosos e desconta na sofrida classe dos trabalhadores. Para esses e muitos outros exemplos, o critério de quem deve viver e quem deve morrer já está bem claro, e infelizmente não é uma obra de ficção. Resta-nos apelar para suas afeições humanas e torcer para que ainda reste um pouco de humanidade que os façam perceber a tempo que, assim como Thanos, eles também não são inevitáveis.
** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do O Olhar.