Quase todo mundo já deve ter sonhado com uma máquina do tempo pra voltar ao passado, rever amigos, reviver momentos. Se o Delorean do Dr. Emmett “Doc” Brown (“De volta para o futuro”) ou a cabine telefônica dos amigos Bill & Ted existissem de fato, isso até poderia ser possível.
Mesmo sem uma máquina do tempo, os valadarenses, principalmente aqueles com mais de 40 anos, desde o início do mês podem fazer uma breve volta ao passado com a música “Valadares”, lançada no Youtube no dia 2 de julho.
Composta e interpretada pelo músico valadarense, hoje radicado em Belo Horizonte, Renato Boechat, a canção já tem quase 10 mil visualizações, sem contar os vídeos que circulam por grupos de WhatsApp, indo e vindo por diferentes cidades do país e até pelo mundo afora.
A música é um passeio pela Valadares dos anos 1980, princípio dos anos 1990, com um pouquinho do que o valadarense vivenciou. Nela estão alguns ícones da cidade como o Cine Sir, o Trecho Privê, a coluna Nádia Maria no Diário do Rio Doce, o Pio XII e referências a diversas bandas de rock que começavam a borbulhar pela cidade.
Renato Boechat nasceu em Valadares e se mudou para Belo Horizonte há pouco mais de 20 anos para estudar música e lá se firmou como artista conceituado. Ele conta que a ideia nasceu da vontade de voltar a morar naquela Valadares dos anos 1980.
“Não que a de hoje seja ruim. Mas é que é um pouco desconhecido pra mim aquilo que a cidade foi se tornando, lógico, pelo fato de não estar mais aí. E também porque várias pessoas daquela época já não estão mais por aí”, diz o músico.
O projeto, apesar de já ser uma ideia que passava pela cabeça, aconteceu meio que por acaso, principalmente por conta da pandemia do coronavírus.
“Fiquei muito comovido com isso (com o avanço da covid na cidade). Fiquei muito preocupado e me deu vontade de fazer alguma coisa. E aquilo que eu podia fazer era uma música, trazendo à tona a beleza daquilo que vivi aí. Eu acho que a beleza é que salva as coisas”, conta Boechat.
Nostalgia
A nostalgia provocada pela música em algumas pessoas levantou tópicos e conversas em grupos de whatsapp e de redes sociais diversas. Muita gente lembrando das referências, relembrando histórias, comentando fatos e lugares que faltaram na música.
Boechat conta que a repercussão da música tem sido grande. Segundo ele, a sensação é de que a canção toca num assunto que estava latente em muita gente.
“Essa história de Valadares ser uma cidade que exporta, né. Eu acredito que a música tocou numa corda, numa inervação bem doída do valadarense. Por que, imagina uma cidade onde é uma tradição, de alguma maneira, que várias pessoas saiam e vão fazer a vida em outro lugar. Com certeza, essas pessoas ficam de lá com saudade, com vontade de rever, de reencontrar”, comenta.
Ibituruna
Apesar da música descrever com detalhes alguns momentos e lugares da Valadares oitentista, dá pra sentir falta do maior símbolo da cidade: a Ibituruna. Boechat conta que isso quase resultou num problema de família.
“A primeira vez que minha irmã escutou, ela perguntou: ‘e a Ibituruna?’. Aconteceu que foi ficando uma música grande, imensa e eu tive que editar, tive que tirar algumas estrofes. A minha sensação é que o assunto é imenso. Até escrevi no texto em que anunciei o lançamento que Valadares é um mar e essa música é uma gota”, explica o músico.
Mas, quem sentiu falta da Ibituruna na música não precisa ficar chateado. Boechat revela que tem a ideia de fazer uma música sobre a Ibituruna para fechar a trilogia Valadares.
É que ele também já tem uma música pronta que fala do crime ambiental ocorrido em Mariana, quando a barragem da Samarco se rompeu, provocando danos irreparáveis ao meio ambiente, principalmente ao Rio Doce, um dos cartões postais da cidade. Em breve ela também será lançada.
O músico também explica o trecho da música que diz “o tanta água passou debaixo daquela ponte/Ninguém se banha no mesmo Rio Doce duas vezes/Às vezes tudo que eu quero é me teletransportar”.
“Há um ditado francês que diz que você nunca ama a mesma mulher duas vezes e nunca se banha no mesmo rio duas vezes. Isso, porque o fluxo do tempo muda tudo, o tempo muda as coisas, muda as pessoas, muda os lugares. Então, ninguém se banha no mesmo Rio Doce duas vezes. E querer me teletransportar, seria uma espécie de voltar àquele lugar no tempo. Eu sinto falta de viver aquilo tudo de novo e, hoje, mesmo voltando à Valadares, não consigo mais”, conta.
Músicos da cidade e participação especial
Para a produção de “Valadares”, Renato Boechat “convocou” os amigos valadarenses Ary Marcos, que foi baixista da banda Sociedade Anônima e ainda mora na cidade, onde ainda segue tocando com outras bandas; o baterista Isaac Zeferino, que entre outras bandas, já integrou os Vitrolas e que também mora hoje em Belo Horizonte; e o músico Fernando Persiano, que desta vez cuidou da produção do vídeo com várias imagens dos anos 1980.
Junto com eles, o músico Marcos Gauguin cuidou dos teclados. Gauguin trabalhou com o Skank, tendo mixado o primeiro disco da banda e participado de apresentações como guitarrista de apoio.
Ele também trabalhou com a banda Sagrado Coração da Terra e, atualmente, é guitarra solo e vocal da banda Sgt. Pepper, cover dos Beatles que já recebeu elogios de ninguém menos que Paul McCartney.
“Quase tudo foi feito remotamente. Só eu e o Marcos Gauguin trabalhamos juntos aqui”, explica Boechat.
Renato Boechat tocou, em Valadares, em bandas como Metrópole, Comeu Jaca e Falso Delito, entre outras. Há pouco mais de 20 anos, ele se mudou para Belo Horizonte para estudar música e lá vem mantendo um trabalho consistente no meio musical.
Na capital, ele também tocou em algumas bandas, lançou o álbum “Alfaiataria”, com a banda Trinidad; produziu alguns trabalhos de artistas, incluindo de Valadares, como a banda Grafômanos, do guitarrista valadarense Sandro Marte, e um disco do cantor Marcos Aranha com Bruno Ceccato, ambos também valadarenses.
O último trabalho lançado por Boechat é o disco “Para o tempo”, que está disponível aqui.
Boas lembranças
Angélica Bragatto, 48, professora: “Eu acredito que o ‘clipe’ (termo mais demodê, típico da geração Z) do Renato Boechat tenha tido tanta repercussão porque houve ali, naquelas imagens e fotos, uma sensação geral de pertencimento de toda uma prole, de uma galera, que frequentou aqueles bares, ouviu aquelas músicas, seguiu aquelas bandas. Ajudamos a dar voz à um grito de liberdade que foi reprimido pela geração anterior. Hoje, somos pais, alguns até avós e seguimos gostando de boa música. Há uma certa nostalgia? Claro! Olhamos para essa geração com um certo desdém? Sim, mas nossos pais também nos olhavam da mesma forma. Em resumo: é a clássica letra de Belchior se repetindo na nossa vida “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”.
Vinícius Cabral, 60, jornalista: “O clipe nos leva a uma viagem ao passado, sem dúvida. Eu vivi muito essa época e me lembro com muita clareza de todos esses ícones, símbolos, detalhes que ele cita na canção. Com um rock bem anos 80, o Renato vai nos conduzindo pelas estradas da memória, trazendo roupas, carros, lugares, termos da época, que criam um clima de saudade e talvez, nostalgia. Talvez, algumas pessoas não se lembrem de coisas que ele fala como “teletransportador” (bem Star Treck), matinê, Rambo, Pappilon, “ninguém se banha no Rio Doce duas vezes” (lembrando Heráclito, o filósofo). Fala da elite da cidade pecuarista, seus conceitos e preconceitos, que “elege Collor de Melo”, relembrando seu colunista no Diário do Rio Doce. Uma retrospectiva sensacional, de fazer inveja a Irwin Allen (Diretor da série “O túnel do tempo” – da mesma época). Parabéns aos envolvidos nesse trabalho de turismo temporal. Viajei de verdade!”.
Paulinho Manacá, 59, músico e professor: “Aparecer no clip “Valadares”, de Renato Boechat, me deixou emocionado por ser lembrado e homenageado pelo autor. Nasci em GV e vivo aqui até hoje. Passei por todas essas badalações, frequentei os locais apresentados no clipe e presenciei as diversas mudanças na nossa cidade. Agora, Renato foi “ninja” demais construindo essa letra, apresentando as imagens de locais e personagens que atuaram no tempo e nos espaços dessa época. Uma melodia e um ritmo bem mineiros que, na minha opinião, foi acertada, com tempero perfeito. Parabéns para o Renato Boechat.”
Léo Rabelo, 52, professor de artes na Inglaterra: “Nos finais dos anos 80, as bandas surgiam por todas as partes da cidade; em sua maioria, de precários recursos musicais quanto à qualidade criativa e de equipamentos. O que elas representavam era o anseio da juventude pela liberdade de expressão recém adquirida e a vontade de uma conexão com o circuito artístico vigente dentro daquele idiossincrásico do-it-yourself punk.”
Patrícia Bandeira, 41, administradora: “Vendo o vídeo da música “Valadares” me deu uma saudade da época que ainda no colégio, eu que já tocava violão. A gente marcava com a galera de encontrar mais tarde pra fazer um luau, uma resenha ou ir assistir ensaio das bandas, ou um rolê no Pio XII e Manacá, que era onde se concentravam todos os músicos. Fora a curtição no Fest Rock que era tão maravilhoso que, quando assustávamos, o sol já havia nascido. Que sensação maravilhosa tive quando escutei e assisti esse vídeo! Parabéns, Renato Boechat”.
Azenclever Fernandes, 48, fazendeiro na Romênia: “Pra mim essa música ficou nota 10. Me trouxe lembranças que marcaram. Os shows de rock que a gente tinha aí; Fest Rock; a Exposição, que eu ia só nos dias de shows de rock. Isso marcou e muito. Me trouxe essa nostalgia. Também o Pio XII, as bandas de rock que a gente ouvia na época. Parabéns para o Renato Boechat pois conseguiu traduzir bem aquela Valadares dos anos 1980”.
Confira a música e a letra abaixo:
Valadares (Renato Boechat)
Valadares
Em plenos anos 80
Uma moçada leve e solta buscando onde ir
Valadares
Quem te conhece te compra
Toda vertigem humana em cena
Seu palco é ali
Valadares
O calçamento em bloquetes
Chevettes, motos, Corcéis
Carroças e bicicletas
Valadares
40 graus não assombra
O universo transpira a nosso favor
Valadares
Chegou o fim de semana
No Garfo Clube biquinis avançam além do pudor
Namoro no sofá
Mas se o seu pai deixar
Te levo na matinê
Dançar no Trecho Privê
Só que ele é militar
Ele não vai consentir
Que tal a gente assistir
O Rambo no Cine Sir¿
Mas se ele cochilar
Posso te sequestrar
E tirar seu baton
Na suíte do Papillon
Valadares elege Collor de Melo
Na prefeitura são meros fantoches dos pecuaristas
Valadares
A praça da Boca Aberta
Carioca Nunes se travestia em Nádia Maria
Valadares
No Diário do Rio Doce
A burguesia bajula a ironia de Júlio Avelar
Namoro no sofá
Mas se o seu pai deixar
Te levo na matinê
Dançar no Trecho Privê
Só que ele é militar
Ele não vai consentir
Que tal a gente assistir
O Rambo no Cine Sir¿
Mas se ele cochilar
Posso te sequestrar
E tirar seu baton
Na suíte do Papillon
Valadares
O Pio XII concentra
Artistas, hippies e boys
Mentes que ascendem e transcendem
Valadares
É julho na Exposição
Rodas gigantes, maçãs, Fest Rock, mulher gorila
Valadares
O rock é na madrugada
A Sociedade Anônima lota o salão do Ilusão
Namoro no sofá
Mas se o seu pai deixar
Te levo na matinê
Dançar no Trecho Privê
Só que ele é militar
Ele não vai consentir
Que tal a gente assistir
O Rambo no Cine Sir¿
Mas se ele cochilar
Posso te sequestrar
E tirar seu baton
Na suíte do Papillon
E tanta água passou debaixo daquela ponte
Ninguém se banha no mesmo Rio Doce duas vezes
Às vezes tudo que eu quero é me teletransportar
Valadares
Quem te conhece te lembra
Valadares
Quem te conhece te guarda
Valadares
Quem te conhece te leva
Valadares
Primeiro amor não se esquece