O Número do Sapato

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O número do sapato
Imagem: Reprodução/Internet

Sou um amante inveterado de filosofia. Confesso que é um vício, um hábito, rotina que não consigo abandonar. Tenho essa obstinação, e mania, de em tudo ver algo filosófico para compreender. O mundo é grande, dá muitas voltas, e o pensamento me acompanha nas rotações para lá de minutos que a vida faz a mim, no giro que me envolve, a cada dia mais, ser um cético, questionador, ou, simplesmente, um ser humano. Isso que sou. Um ser que pensa sobre as areias da praia e esses cabelos tremulando ao vento. Nada passa a mim sem uma observação. Nem um grão de areia, ou fio de cabelo, sequer.

Estou diante do tempo esperando a lotação chegar. Na vida lá fora, vejo pessoas correndo atrás de algo que não vão encontrar. Dentro de mim, eu também me apresso a ficar lá um pouco mais, na busca por entender tudo isso que aí está. Economia de mercado, planificação estatal, moedas que somem, e comida que não tem no prato não. Penso sobre isso também. Muito e de montão. Esperando a lotação, na minha juventude que se foi, lembro como foi, o dia em que ao lado de mim, alguém sentou. E ficou. Uma conversa então se instalou. Uma reflexão, talvez, também.

Eu não a conhecia e, imagino que ela também não. Eu era um estranho, tanto para ela, como para mim, pois, do meu eu, nada ainda sabia, coisa que deixo para outro dia explicar. Notei naquele rosto uma serena tristeza, daquelas que o dia não permite as sombras esconder, exatamente para o que está dentro saia, dor que não pode ficar. Perguntei se estava tudo bem, entre sons de buzinas de carros, e passos apressados de homens e mulheres vestindo-se importantes, para algum encontrado marcado. A resposta dela foi um sim, com um timbre melancólico enfim, porém, sem muito conteúdo para eu poder analisar. Mas sei a linguagem do corpo, aquilo que se diz sem pronunciar uma letra, uma fala prolixa do querer se expressar. Entendi o recado. Falei então sobre qualquer coisa.

Comecei pelo tempo, o clima, como todas as conversas entre desconhecidos iniciam, para algum assunto se dar. Disse que talvez choveria, a previsão do aplicativo dizia, apesar de atualizado ele não estar. Um riso se fez na pessoa, a mulher ao meu lado, que insistia em esconder a tristeza, não de seu rosto, mas de mim, um desconhecido. Um passo foi dado, sorriso foi o recado, de uma cumplicidade que podia estabelecer. Então pensei, clima não pode ser assunto mais. Vou para outro, pois. Uma ponte a construir precisava ser. Filosofia que não fugia de mim nem nesse instante. Uma dialética para resolver a incrível jornada de ser. A vida é.

Do clima fui para a música. Sim, a música, esse encantamento da alma, nos instrumentos a melodias percorrer nossos corações e nossas almas, a arrepiar a pele, e elevar as emoções. Pela música, dá para se conhecer alguém, sua personalidade ou, ao menos, o que a pessoa está se passando naquele momento da vida. Perguntei para ela o que gostava de ouvir. Ela me disse que ouvia muita música popular brasileira, como também sertanejo universitário, algo assim. Com este relato, então fiz uma nova indagação: sertanejo para dançar ou para chorar de paixão? Ah, ela riu ainda mais forte, uma gargalhada lá do interior de nós, como se anjos quisessem sair dali e se expressar. A serena tristeza corou-se, um pouco mais de ânimo veio, mas a resposta não. Fiz a minha leitura, contudo, e dei minha contribuição. Disse o que eu gosto e já escutei. Falei que já ouvi muito Legião Urbana, Nirvana, Titãs e Iron Maiden, mas também já fiquei horas e horas ouvindo A-ha, se alguém aí sabe o que é. Take me on é a minha preferida, disse para a mulher, nós dois ainda esperando a lotação. E olha que, para a minha surpresa, esta música da banda de synth-pop norueguês, começa dizendo assim: We’re talking away (Estamos jogando conversa fora). Falei para a mulher isso e, pouco a pouco, comecei a cantarolar a música. Não tive muito sucesso musical, confesso. Isto não está entre meus talentos filosóficos. Mas mais um passo foi dado. A tristeza parecia querer ir embora. E isso era o que fazia sentido para mim. Não somos proprietário do sofrimento. Saí pra lá, por favor.

Da música passei aos sapatos. Sim, vocês não sabiam disso? Sapatos é a parte mais íntima das pessoas. Eles calçam e sustentam a nós, encaixam em nosso corpo, e sabem a todos os lugares que vamos. Testemunham, presenciam, ouvem risos e lágrimas, seja na chuva ou no sol, em qualquer lugar. Dá para conhecer a pessoa pelo sapato que usa, o tipo, o modelo, o formato, a cor e, especialmente, o número, algo que somente os mais íntimos em segredo sabem. Lembram de Cinderela? É por aí. Contos de fadas passam mensagens. E filosofia também.

Eu calçava tênis básico, comum, de dia a dia. Disse para a mulher que sempre caminho muito, e preciso de algo confortável, tanto para os pés como para o bolso. Ela riu de novo, viu que isso era uma verdade, e até arriscou a concordar comigo, no que eu ri também. Olhei para os dela, calçados estilo bota, um pequeno coturno preto, baixo, tratorado, Gigil. Sei disso bem, a literatura me fez aprender um pouco sobre isso. A mulher ficou espantada, pela minha descrição, de algo que ela não imaginou que eu pudesse saber. Eu disse para ela: “só sei que nada sei”. Ela riu ainda mais com essa cartada filosófica minha, disse que segredo não seria, o número do calçado dela a me dizer. Eu fiquei lisonjeado com isso, digo que até um suspiro podia ter vindo, porém, sabia que a mim o número não pertencia. Perguntei: o número do sapato tem relação com a tristeza em seu rosto? Arrisquei meu posto, ainda sentado ao lado dela a espera da lotação, aguardando o destino decidir o que era melhor para nós. A resposta dela foi um sim. E a minha foi um não, o número não era para mim.

Ela começou a chorar, e assim eu não podia ficar, pois, não consigo ver águas sem que o oceano dentro de mim transborde. Joguei para ela essa responsabilidade, de não deixar que as ondas de minhas emoções jorrassem, a ser mais fortes que as caudalosas correntes do leito meu. Porém, expliquei a ela a ideia que supunha ser de todo aquele rio que correu diante de mim. Tive uma hipótese em minha mente, a qual compartilhei. Expliquei que o número do sapato poderia ser entregue, se a pessoa estivesse disposta a receber. Fiz compreender que isso é valioso, que poucos tem esse sabor, de calçar os pés de alguém. A tal coisa chamei de dádiva, algo sagrado, divino, a perspectiva do Paraíso, um verdadeiro Éden perdido. A entrega de um sapato, do número dele, para uma pessoa, representa todo um íntimo entregue também. Só os dignos de tal presente o merecem. Os donos do calçado o sabem disso e, assim, escolhem aqueles que os irão calçá-los, pegá-los, para que, cuidadosamente, os coloquem sob os seus pés e os conduzam por toda a vida. Não é qualquer pessoa que lhe calça. Não é qualquer pessoa que caminha ao lado dos seus pés. Não é qualquer um que pode ser seu par.

A mulher pareceu concordar com o que eu disse e, assim, eu a ajudei a secar um pouco toda aquela precipitação em seus olhos. Ela recuperou-se, respirou um pouco, viu seus pés, os admirou, valorizando-se a si mesma, após aquela maiêutica romântica. Olhou para o lado, viu que seu ônibus estava aproximando, e lançou para mim uma última pergunta, sabendo do meu apreço filosófico, e do nosso encontro, desencontro que será, enfim. Ela então perguntou a mim: para quem eu entrego o número do meu sapato?

Abri um sorriso, refleti sobre tudo o que foi dito, e uma última mensagem deixei para ela, antes dela ingressar no itinerário que a levaria dali, para um lugar que espero ser o melhor. Eu disse, filosoficamente e esteticamente, a beleza da vida a encontrar, enfim, estas palavras para, sempre, recordar:

Entregue para a pessoa que saiba como são seus pés.

2 COMENTÁRIOS

  1. Engraçado como tal crônica se encaixou com meu dia hoje. Texto muito bonito e importante reflexão (que eu mesma estava precisando).

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