O que há de natural nos “desastres naturais” em Governador Valadares?

0
1770
o que há de natural nos desastres naturais em governador valadares novo artigo de welder nunes
Foto: Divulgação/PMGV

“Oh! Deus
Perdoe este pobre coitado
Que de joelhos
Rezou um bocado
Pedindo pra chuva
Cair sem parar
Oh! Deus
Será que o Senhor se zangou?”
Súplica Cearense, Luiz
Gonzaga.

Trouxe esses tristes versos de Súplica Cearense, porque neles aparece um dilema também vivenciado por parte da população valadarense nos meses quentes e chuvosos de verão. Desejada por “n” motivos, dentre os quais destaco seu benefício aos pequenos agricultores de um município cujo crescimento apoiou-se na concentração fundiária e na exploração de suas riquezas naturais, a chuva também é capaz de gerar muita apreensão aos moradores dos bairros ribeirinhos da cidade em tal época.

Nesta semana, as fortes chuvas na Bacia do Rio Doce se encarregaram de produzir esse clima. Burburinho na ponte da Ilha do Araújos, olhares vigilantes; o monitoramento popular do leito do rio anuncia o perigo. A Coordenadoria Municipal de Proteção e Defesa Civil (Compdec) emitiu o seguinte informe: “é importante que os moradores que vivem em bairros alagáveis fiquem atentos à comunicação oficial do município”. [1]

E não é pra menos. Na última enchente o número de desalojados ultrapassou 15 mil pessoas, sendo que mais de 500 ficaram desabrigadas. Ainda segundo os dados divulgados em 31/01/2020 pela Secretaria de Comunicação e Mobilização Social da prefeitura, “cerca de 50 mil moradores de áreas ribeirinhas foram prejudicados direta e indiretamente”. [2]

Na canção de Luiz Gonzaga, o culpado pelos prejuízos econômicos por “cair toda chuva que há” é o próprio “pobre que nem sabe fazer oração”, e não de sua condição social que o torna vulnerável tanto à seca como à cheia. Já em Governador Valadares, o entorpecimento fica a cargo do discurso que culpabiliza a própria natureza pelos estragos causados pelas chuvas. Na lógica desse discurso que põe a cidade na condição de vítima do meio ambiente, enchentes como aquela do passado, seriam assim, quase que um castigo divino, sem nenhuma relação com o modelo de desenvolvimento e de organização espacial da cidade.

Nos versos destacados, a ausência de frustração do sertanejo para com o poder público cede lugar a uma súplica divina, afinal, foi Deus quem realizou seu pedido por chuva de forma exagerada [3]. Notemos a semelhança com o efeito produzido pela instrumentalização do discurso de “desastre natural”: em ambos os casos afasta-se a possibilidade de entendermos porque as chuvas tornam-se um transtorno.

Sob o argumento de “não politizar a situação”, busca-se evitar esse debate e esconder a “responsabilidade histórica” do poder público conluiado aos interesses empresariais na forma assumida pela malha urbana de Governador Valadares, que adentrou em áreas periféricas alagáveis à beira rio. Há quem veja nisso algo interessante, já que do alto do Ibituruna o aspecto da cidade lembra o de uma guitarra. [4] Mas o fato é que a expansão da cidade prestou um grande serviço à especulação urbana [5] ao espraiar-se sobre terras já esgotadas pelo extrativismo mineral, madeireiro, e pecuária, garantindo então um novo ciclo de acumulação aos proprietários fundiários.

Quer dizer, terras antes precificadas por alqueire ou hectare, passaram a ser calculadas por metro quadrado. O comentário a seguir sobre a política de construção das vilas BNH, bastante presentes na cidade, escancara essa facilidade com que o empresário rural deixa de ser “fazendeiro” quando surgem oportunidades mais rentáveis, mesmo que completamente estranhas às atividades da agropecuária:

“O sistema era controlado pelo governo federal, com gestão compartilhada com entes subnacionais, que geriam as chamadas Cooperativas Habitacionais, as COHABs. Centralizando essa gestão planejavam e executavam a construção das “Vilas BNH” nos pontos mais distantes da periferia, sob a alegação de que só ali existiam glebas que permitiriam a construção em escala, e de que nesses locais os preços da terra eram os menores da cidade, fatos verdadeiros, mas que, entretanto, encobriram um verdadeiro ardil do capital mercantil urbano, mancomunado com a administração pública.” [6]

Por essas e outras, a afirmação de que “[…] a situação de precariedade em nossa cidade é herança das políticas neoliberais implementadas pelos últimos governos federais, estaduais e municipais” [7], soa como apropriada até o momento em que deixamos de negligenciar as consequências da formação socioespacial na vida das pessoas. A calamidade transitória que atormenta até mesmo a “classe média” habitante das terras da antiga fazenda dos Araújos neste período de chuvas, bem como a precariedade  constante de quem vive junto aos urubus na senda que liga o lixão da cidade aos fundos do bairro Turmalina, apesar da diferença substantiva, são problemas que antecedem os últimos governos.

Como na maioria das cidades brasileiras, a urbanização caótica de Governador Valadares, em certo sentido, se voltou contra sua própria população. O agravante é que nestas terras que têm dono (!), o que se entende por “crise urbana”, adquiriu uma conotação sinistra devido à rápida inflexão da dinâmica econômica de caráter extrativista e  dependente na qual assentou a explosão demográfica da cidade a partir da década de 1940.

Nesse sentido, responderia a questão que intitula este escrito dizendo que há pouco de natural no suposto “desastre natural” que seriam os estragos causados pela enchente, e muito da lógica do modelo de desenvolvimento aplicado na cidade, orientado pelo lucro a qualquer custo. Contra esse discurso – que em si mesmo é um verdadeiro desastre – devemos nos atentar para o fato de que as chuvas de verão sempre ocorreram na bacia do rio Doce, inclusive antes da existência da cidade. Ou seja, o fenômeno natural “cheia do rio Doce” só se transforma em tragédia urbana devido à organização espacial da cidade que produz “situações específicas de vulnerabilidade”, que na maioria dos casos dizem respeito à parcela mais pobre da classe trabalhadora valadarense. [8]

Finalizo este espaço com uma outra indagação: podem as proposições meramente técnicas, típicas dos engenheiros, darem conta dos desafios sociais profundos que a questão das enchentes engendra?

Referências:

[1] _ https://oolhar.com.br/gv-esta-em-alerta-laranja-mas-rio-doce-nao-deve-sair-do-leito/
[2] _ https://www.valadares.mg.gov.br/detalhe-da-materia/info/governo-de-minas-reconhecesituacao-de-emergencia-em-valadares/87329
[3] _ http://periodicos.urca.br/ojs/index.php/MigREN/article/viewFile/665/708
[4] _ https://www.facebook.com/186147698166420/posts/2321331671314668/
[5] _ https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16139/tde-26052010-104844/publico/
EAndrade_Tese_Final.pdf
[6] _ https://www.eco.unicamp.br/images/arquivos/artigos/1807/texto177.pdf
[7] _ http://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2020/MG/45535/426/candidatos/
644543/5_1600979388749.pdf
[8] _ https://passapalavra.info/2020/01/129621/
Fonte da imagem: https://www.valadares.mg.gov.br/detalhe-da-materia/info/governo-de-minasreconhece-situacao-de-emergencia-em-valadares/87329

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

15 − 5 =