Valadares, sinopse de Latinoamérica

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valadares sinopse américa latina, artigo do colunista welder nunes de souza
Noite de lua cheia em Governador Valadares [1]. Foto: Nil Rodrigues

Eu sou o que deixaram,

A sobra de tudo o que roubaram.

(…) Eu sou o sol que nasce,

E o dia que morre,

Com os melhores entardeceres.

Latinoamérica, Calle 13

Nas outras aparições minhas neste espaço (ver links: [2] e [3] no final desta página), a despeito da temática pouco afável àquele jornalismo de “(…) influência da escola americana” – palavras do jornalista Carlos Olavo [4] –, há quase uma lamentação em relação ao rumo assumido pela evolução da cidade, já que tal direção passou longe de uma transformação social para melhor, que poderia gerar mais qualidade de vida e maior justiça social.

Não sou valadarense, mas me sinto à vontade para lamentar. Valendo-me de uma frase que ouvi recentemente: “ninguém me tira o direito de julgar uma padaria porque não sei fazer pão”. E mais, afinal, há oito anos fiz de Jequitinhonha – minha cidade do coração – uma segunda casa. É aqui que sigo vivendo; ou melhor, sobrevivendo, tendo em vista a pandemia e o pandemônio.

Ou seja, tempo suficiente para entender que o meu lamento em relação ao rumo que tomou a evolução da cidade, provém de um apreço, cujas raízes estão em uma identificação maior.

Não falo pelo Pico da Ibituruna, essa “pedra negra” em Tupi-Guarani [5], semelhante a uma grande entidade, estrategicamente posicionada onde “(…) o rio toma a direção leste a caminho do oceano” [6]; aquela que lá um dia, quem sabe, despertará de seu sono profundo para vingar o quase extermínio dos verdadeiros pioneiros, tais quais tanto respeito tinham por ela, que hoje, infelizmente, encontra-se cada vez mais entregue a exploração da iniciativa privada [7].

Nem mesmo por se tratar um caso raro de cidade em que o seu bairro mais exuberante se encontra em uma ilha fluvial. Quem sabe, pelo morro do Carapina, que com sua  cultura aglutinadora de samba, capoeira e carnaval, é o mais efetivo antídoto contra os resquícios do americanismo de uma tal “Valadólares”.

Também poderia justificar esse sentimento exaltando seus botecos e a rica gastronomia popular presente na maioria deles; ou porque não atribuí-lo ao espetáculo propiciado pelos campeonatos de parapente, essa experiência visual memorável?

Valadares sinopse américa latina, artigo do colunista welder nunes de souza
Foto: Reprodução/Internet

Diria ainda ser inevitável não se contagiar pelo “caldeirão de ritmos dançantes” [8] que é a sonoridade irreverente e reflexiva daqueles “macacos” nem tão velhos assim, ou pela magia do reggae jamaicano da Dr. Indica; esses que junto a outros(as) tantos(as) artistas e trabalhadores(as) da cultura, se empenham em “(…) devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade” de modo a evitar a “(…) depressão crônica que paralisa os cidadãos” (trechos do manifesto Caranguejos com Cérebro [9]).

Enfim, esses e tantos outros atributos fazem de Valadares uma cidade muito interessante. Entretanto, a meu ver, é justamente o lado tempestuoso de seu passado que é capaz de produzir a mais pertinente identificação. Não uma identidade estanque, conservadora, apaixonada consigo mesma; muito menos o seu inverso; aquela “(…) identidade anômala, que faz com que os habitantes deste território tenham como ideal econômico e social, um que possa ser construído em outras terras” [10].

Refiro-me a uma identificação fincada nestas paragens, mas que extrapola as Minas Gerais. Como fez o Clube da Esquina, naquela célebre declaração periférica de rock and roll, dedicada Para Lennon e McCartney, em que reconhecem a condição latino-americana contra as representações ideológicas que provocam estranhamento entre seus povos e lugares [11] [12].

Um sintoma dessas representações, é que por vezes, muitos de nós, expressamos o desejo de “conhecer a América Latina” na forma de uma alienação espacial, como se 40% de seu território não fosse ocupado pelo Brasil e toda a sua diversidade regional, que em última instância, é uma diversidade latino-americana. Não há tantos motivos para que os valadarenses furtem-se de reconhecer isso.

Guerra injusta aos povos indígenas habitantes do “sertão do rio Doce” [13] – os primeiros que ferozmente lutaram (e seguem lutando) contra a “alternativa infernal” [14] do progresso –; urbanização inicial induzida por uma linha férrea estabelecida para escoar riquezas naturais deste vale até as nações centrais; crescimento posterior dependente da pecuária, extração de madeiras e minérios: “não precisa ir muito além dessa estrada” para saber que o subdesenvolvimento do lugar que um dia foi o da “promissão”, é só mais um capítulo do destino trágico da América Latina no interior da ordem capitalista global.

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Pontilhão de Derribadinha e o trem surgindo no meio da neblina [15]. Foto: Nil Rodrigues
O que foi a mica senão uma espécie de “excremento del diablo” valadarense? Assim é conhecido o petróleo venezuelano, que gera muita poluição, e tantos interesses atiçam, sem nunca trazer desenvolvimento efetivo ao país.

Muito se fala do SESP (Serviço Especial de Saúde Pública), instituição fruto dos Acordos de Washington, cuja finalidade foi propiciar condições sanitárias para a extração desse mineral na cidade [16]. Porém, nem tanto se diz da dilapidação da natureza local, ou do fluxo de dinheiro que se exauriu como fumaça a partir do esgotamento dessa atividade, que se apoiou, em suma, na força de trabalho de mulheres negras [17], provavelmente, parcamente remuneradas.

O que se sabe, segundo um importante historiador da cidade, é que com o esgotamento da mica, a cidade também foi se transformando “(…) em reservatório de mão de obra (…) para o trabalho doméstico” [18].

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Cotidiano nas proximidades da “miqueira” Santos, Nogueira Minérios S.A. [19]. Foto: Divulgação
Exportamos produtos ou exportamos solos e subsolos? Eis o questionamento de Eduardo Galeano que não requer tanta adaptação para fazer sentido ao contexto desse passado que grita em nossos ouvidos, dizendo haver, neste lugar, mais da América Latina que de qualquer outro poderio econômico que tenha muito bem aproveitado de suas riquezas.

Àqueles que não se convenceram pelos argumentos do forasteiro que vos fala, aconselho a leitura da “obra-prima” de Carlos Olavo: Nas Terras do Rio Sem Dono. De valoroso estilo, espontâneo e fluido [20], ganhou fama exagerada de romance, mas é mesmo um magnífico depoimento com teor de denúncia da violência do poder dominante contra posseiros e camponeses destas cercanias, pelos idos do pré-1964. Esses, que como tantos outros povos latino-americanos, não se deixaram conduzir bovinamente aos “subúrbios das cidades, tentando consumir o que antes produziam” [21].

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Trabalhadores e Chicão (liderança política) na porta de sua sapataria, onde funcionava o sindicato [22]. Foto: Divulgação
Se organizaram e lutaram por uma vida boa (ou menos dura). Era a necessidade latente de reforma agrária, que por sinal, é muito bem tematizada no livro. Dizem que nem todos os valadarenses sabem da existência desse ou daquele Combate – nome do valente jornal que foi incendiado por “falar demais”. Também não há praças e bustos em homenagem a Chicão e cia.

Pode a ausência de espetacularização, que vai na contramão de narrativas como a de Bacurau [23], impactar no devido (re)conhecimento desse livro nos dias de hoje? Ou seria mais importante saber: caso o enredo de Bacurau tivesse como plano de fundo uma luta política real assentada no objetivo de reduzir as distorções da estrutura fundiária de determinado lugar, esse filme teria tido tamanha circulação?

Napoleão Bonaparte dizia ter mais medo de três de colunas de jornal do que de cem baionetas. Por esses dias, li em uma rede social, que sendo assim, ele deveria ter mais medo de um livro como Nas Terras do Rio Sem Dono, do que de cem mil colunas de jornal.

Seja lá qual for a causa de sua popularidade indevida, esse testemunho das veias da América Latina – que seguem abertas –, sobreviverá no tempo, principalmente se O Anjo da História [24] estiver certo, quando diz haver na voz que damos ouvidos um eco de outras já silenciadas.

Referências
[1] _ https://www.facebook.com/Fotos-antigas-e-atuais-de-Governador-Valadares-MG-324319641034891/photos/2284676101665892
[2] _ https://oolhar.com.br/colunistas/a-estetica-da-decadencia-nem-tudo-que-reluz-e-ouro/
[3] _ https://oolhar.com.br/colunistas/o-que-ha-de-natural-nos-desastres-naturais-em-governador-valadares/
[4] _ http://www.observatoriodaimprensa.com.br/feitos-desfeitas/para-o-jornalista-o-combate-continua/
[5] _  https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/ibituruna/historico
[6] _ https://periodicos.ufes.br/geografares/article/view/156
[7] _ https://www.ufjf.br/crdh/2020/08/07/nota-tecnica-projeto-230-2019/
[8] _ https://artistas.showlivre.com/artista/macaco-vei
[9] _ http://www.recife.pe.gov.br/chicoscience/textos_manifesto1.html
[10] _ https://core.ac.uk/download/pdf/6237084.pdf
[11] _ http://www.radiolaurbana.com.br/um-clube-no-ceu-do-brasil/
[12] _ https://icgilbertoluizalves.com.br/imagens/textocientificopdf/alves-gilberto-luiz-universal-e-singular-em-discuss-o-a-abordagem-cient-fica-do-regional290504.pdf
[13] _ https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/FRONTEIRAS/article/view/63
[14] _ http://revistadr.com.br/posts/o-preco-do-progresso-conversa-com-isabelle-stengers/
[15] _ https://www.facebook.com/Fotos-antigas-e-atuais-de-Governador-Valadares-MG-324319641034891/photos/2150289995104504
[16] _ https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2007000500026
[17] _ https://www.facebook.com/324319641034891/photos/a.324327247700797/666390480161137/?comment_id=833250790141771
[18] _ https://static1.squarespace.com/static/561937b1e4b0ae8c3b97a702/t/5724a7fa22482e5c002898aa/1462020093175/7_Espindola%2C+Haruf+Salmen.pdf
[19] _ https://www.facebook.com/324319641034891/photos/a.324327247700797/666390480161137/?comment_id=833250790141771
[20] _ https://www.skoob.com.br/livro/65304#_=_
[21] _ https://www.google.com.br/books/edition/As_veias_abertas_da_Am%C3%A9rica_Latina/H53RagIg0N0C?hl=pt-BR&gbpv=1&printsec=frontcover
[22] _ https://www.facebook.com/Fotos-antigas-e-atuais-de-Governador-Valadares-MG-324319641034891/photos/2037985336334971
[23] _ https://lavrapalavra.com/2019/11/01/a-idealizacao-da-miseria-e-o-esvaziamento-politico-da-violencia-em-bacurau/
[24] _  https://www.google.com.br/books/edition/O_anjo_da_hist%C3%B3ria/x2CkAgAAQBAJ?hl=pt-BR&gbpv=1&printsec=frontcover

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