Voy, voy, age…
Um piano ouço de fundo. A cada toque uma passagem minha. De volta ou ida não sei. Sei que bem fiquei, por um tempo assim, na volta em voltas dessa viagem. Miragem de belas paisagens eu vi, em catedrais, sinos ouvi, o coração dela bater na velocidade do avião. Era imensidão. Aos olhos dela enxerguei tempestade, eu ainda mergulhado em seu oceano. Primeira parada.
Hummm, hummm, hummm…
A estrada tinha muitas retas. Curvas também. Peguei todas elas, ouvindo cada conselho, de onde era melhor partir. Escutei primeiro o ponto de partida, a quem dirigia o leme desse navio em mar revolto. Por pouco sobrevivi, esquecendo do que aprendi, ser a melhor bússola aquela que é entregue junto ao bilhete de viagem. Recebi o papel, da vida com mel e fel, das mãos quentes do Guia, estrela solitária que brilhou, incandescentemente, por todo o meu caminho. Calor no frio caminhei. De casa parti, mas esta eu nunca deixei.
Voyage, Voyage…
Quem me dera uma vez entender o recado assim que fosse dado. Preocupado não ficaria, a viagem seria preferida, sendo confortável a todo instante. Mas nem sempre refrigerante é a bebida, tampouco sendo certa a comida a saciar todas as nossas fomes pelo vale de lágrimas que se passa. Que muitas vezes se arma. Eu era apenas um passageiro, um estrangeiro em terra nascido. Porém, eu não tinha esse argumento, nem o alento, de ficar a esperar na escala o próximo voo, ou partida de novo, de modo sossegado. Em paz. Lembrei do Guia repentinamente. Chorei assim, incansavelmente.
Lala, lala, lara, la la…
Essa viagem me deu tanto medo. Longe de casa estava, carregando a mim e todas as bagagens que trouxe de lá. A cada parada minha, para restabelecer o que eu não tinha, tirava de dentro da mala algo que eu amava. O peso da bolsa era grande, a dificuldade em abrir, gigante, e ninguém queria esperar até que eu visse a fotografia de um tempo bem mais atrás. Vi o rosto dele, a mesa toda florida por ela, substancialmente farta, fraternalmente amada. Minhas mãos não conseguiram segurar o vento que se fez ao passar o trem. A buzina da locomotiva foi um trovão, por dentro não senti mais que não, a vontade de voltar, sabendo eu que só tinha como seguir em frente. Às vezes não é para sempre. Às vezes a gente perde a embarcação.
Voyage, Voyage…
Mas um dia de tanto andar para chegar no lugar, meu sapato furou. Meus pés queimaram, o solado da epiderme deu bolhas, e nenhuma folha eu vi para me cobrir na sombra. Coloquei minhas mãos no bolso, moeda pensei tirar, contudo não foi isso que veio. No sentir do tato, ao meu olfato veio um perfume de lembrança minha. Dentro de mim havia um tecido, o qual aromas me entregava quando mais eu estava longe de mim, como na presente ocasião. Fechei meus olhos, já era um pouco tarde, e a viagem já me maltratava, sem saber a que horas eu iria chegar. Respirei aquele tecido, como se pele minha fosse, e era, e nele mergulhei. Sabe, pensei, tem coisas que nos levam para fora do mundo e para dentro da gente. Aquele tecido em meu bolso era providência divina, de uma vida que eu tinha, onde aquele recorte de algodão era todo o meu abrigo. Era a minha mansidão. A chuva começou e precisei me apressar. Debaixo de águas todos procuram abrigo. Mas nesse dia eu quis me molhar. E, assim, eu me inundei. Continuei a viagem na tempestade de verão. Não tive mais medo do trovão.
Voy… age…
Precisei entrar em uma fábrica de ferro. Disseram que ali eu poderia ter melhores condições para seguir viagem. Fabricavam-se pregos, parafusos, marretas e martelos. Mas sossego não teria, atrasando, por muito tempo, a viagem de ida, ao destino que sempre busquei. Entrei, não me importei, sendo incauto e não ouvindo o mundo, não ouvindo o Guia. Eu sorria, nos primeiros dias, porém, a cada amanhecer, menos uma passada de chegada fiquei, adiando a partida dali. Em plena viagem estabilizei (paralisei), vendo as estações do ano mudarem e minha pele também. Muitos assim eu vi na fábrica, em várias posições, grandiosas ou anãs, e ninguém tinha o afã de sair dali. Senti que vivia para morrer no fim do dia, as bagagens de casa empoeiravam, as fotografias desbotavam, e os poucos que cantavam eram repreendidos. Foram poucos amigos, mas leais o bastante para me expulsar do lugar, dando-me de presente mais um bilhete de viagem, e sorrisos que depois soube que eram meus. Foi o meu adeus.
Voyage, hummm, hummm…
Os dias de fábrica tiraram minha vitalidade, mas ainda eu tinha vontade de seguir viagem e chegar no lugar que não sei como é. No trajeto da seguida, vi que não mais possuía uma das malas que levei de casa. Desesperei nesse ponto, no lugar da geografia, onde ficamos perdidos sabendo a posição. Gritei tão alto, música regente de minha loucura, que a multidão afastou, não querendo andar comigo na passagem. Meu olhar era feroz, eu não tinha um nós, mas do Guia lembrei do que ele disse fazer nesse quiproquó do itinerário. No manual dizia, brisa e água fria, e recompor para continuar, pois nada me faltaria, porque junto de mim, de algum modo, ele estava. Resiliência e paciência, viagem difícil de fazer, não me recordando mais como cheguei aqui e nem mesmo entendendo porque deveria ir a um lugar. Nesse instante senti no talo da língua o paladar da solidão. E essa voz de dentro, que surge nesses momentos, disse que eu tinha razão. Pus-me a caminhar sem entender então. Foi a minha paixão.
Hummm, hummm, hummm…
Restabeleci e uma curiosidade veio a mim, audição do coração: o piano do início tocou de novo. Estava eu todo suado, cansado, com muitas malas a menos e muitas passadas na viagem longa e misteriosa. Prosa eu não queria, longe disso ser uma poesia, mas versificava minhas dores no silêncio de minha alma. Eu queria apenas calma. Sentei assim, no meio da estrada, enfim, e todos que passaram me xingaram, ofenderam-me, me diminuindo, levando tudo o que trouxe até ali. Fiquei sem nada, sem roupa, armas e dignidade. Roubaram até a minha solidão, deixando-me sozinho comigo, no desespero que se instalou em mim então. Olhei para trás, vi minha casa, minha rua, meus amigos, meus pais, minha mocidade. Vi ela também, mas logo fechei os olhos, porque isso era demais pra mim. Pedi o meu fim, não queria mais chegar, desejava só partir. Estridente de minhas entranhas soaram vozes, em alturas intensas, mais alta que volume do buzinar do ônibus de excursão. Depois do som, veio a escuridão. E a luz do dia se apagou na noite. Fim do açoite.
…
Adormeci na viagem, no meio da estrada, povaréu que veio ver eu dormindo em paz. Eu mesmo me vi, dançando com querubins, entrando em lugares que nunca visitei. Chegando mais perto de onde senti ser meu destino, correndo feito um menino, o Guia surgiu novamente na minha frente, dizendo, simplesmente, como eco de voz no deserto: sua viagem não acabou! Guardas altos me levaram, eu me debatia em ira, mas o Guia nada mudava seu semblante. Não se curvou. Olhou para mim sem pronunciar uma palavra, mas a voz de seu silêncio dizia muito. No conjugar do seu verbo íntimo, eu não mais me vi sozinho, acordando em seguida como se estivesse me afogando em um oceano. Minha boca expelia água, outros materiais que sentia ser algo de mim, alimento que me nutria. Confuso estava, o medo veio de novo, e aos poucos meus olhos enxergaram todo o cenário que um dia eu havia perdido: eu estava em casa mais uma vez, nos braços daqueles que amei, sem entender como cheguei ali. Mas sentia alegria, calor, de todo o lugar, porque era um espaço de amor. A solidão foi embora, as malas nunca mais recuperei, mas só sei que no meio de todo aquele mistério, uma Mulher surgiu e me deu alimento. Ela me deu o seu momento. E no conforto do seio dela, ouvi homens dizendo para ela tocar mais uma vez o piano, porque, naquele dia, depois de tantos dias, era bem adequado tocar a música, a canção, aquilo que perpassou toda a viagem dela, aquilo que ela viveu e combinou com o seu refrão… Assim ela, a Mulher, minha Mãe, cantou suavemente então…
Voyage, Voyage…