ENTRANDO NA ESCOLA

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entrando na escola
Foto: Getty Images

COLUNA SORRINDO O LEITE DERRAMADO

Na véspera, Lulu teve um pesadelo. Sonhou que estava perdida numa floresta tropical, sua mãe ficou zangada com ela e a deixou ali… De início, achou tudo lindo! As árvores grandes e misteriosas, com suas enormes raízes e a copa concorrendo com a luz do sol… Não conseguia ver, mas ouvia inúmeros trinados, como uma orquestra de pássaros escondida nos galhos. Alguns arbustos se mostravam cheios de flores e alguns tinham frutos, numa festa de cores e cheiros.

Andou por ali por muito tempo, encantada com a beleza do lugar. Sentiu fome e comeu umas frutinhas escuras (amoras?), sentiu sede e bebeu no regato barulhento, não sem antes se encantar com o movimento dos peixes na água transparente.

Mas, quando se sentiu cansada e se escorou numa pedra, percebeu que estava perdida naquele paraíso… Ficou com medo de gritar pela mãe e atrair alguma fera… Sim, havia se esquecido de que na mata moram lobos, cobras e onças!

Então o medo começou a tomar conta de sua alma! Um aperto no peito, uma vontade de gritar, um clamor que seria ouvido em toda floresta, mas que não conseguia sair de sua garganta. Sentia-se sufocada, uma mistura de sensações: abandono, desamparo, solidão, culpa, medo, tudo ao mesmo tempo… e a escuridão começava a prevalecer na floresta e, com ela, os ruídos mais amedrontadores…

Lulu acordou suada e com a mãe ao seu lado, a acariciando! Ela não quis preocupá-la e não contou seu sonho. Sua mãe disse que era natural ela ter sonhos, afinal o dia seguinte seria muito importante! Ficou ali, até a filha adormecer novamente.

No dia seguinte estava no pátio da escola. Era a terceira escola naquele ano. Já havia saído de duas escolas, por ter sido massacrada por ações opressoras e violentas dos colegas. Na primeira, chegou a ser agredida – bullying era uma rotina em sua curta vida de onze anos. Simplesmente não era aceita nas escolas, porque ali seria diferente?

O pátio da escola era uma beleza! Era, certamente, o estereótipo de uma escola moderna: arejada, clara, cheia de quadros com mensagens otimistas, muito mármore e vidro… No arco principal, a frase de um santo, estimulando todos a amarem uns aos outros. Como não se sentir confortável naquele ambiente? Lembrou-se do sonho e de como, no início, ficara encantada com a beleza da floresta.

Tentou ficar tranquila e repetia para si mesma o mantra: “Aqui vou ser feliz”, que a mãe recitou para ela na saída de casa. Tentou ignorar os olhares e sorrisos que já percebia ao passar. A supervisora a levou para sua nova sala de aula. “Aqui é sua sala, Lulu, o “Quinto Ano A”, a turma mais adiantada! Tenho certeza que você vai adorar!”.

Quando ela entrou, fez-se um silêncio opressivo. Foi apresentada para turma e uma voz, no fundo da sala, deixou escapar: “Que veadinho!”. A supervisora e a professora pareceram não ouvir, mas os sorrisos estampados na face de cada colega, mostravam que não foi uma alucinação de Lulu.

Lulu é uma menina trans de onze anos. Cabelos louros compridos, com um discreto batom e vestindo o austero uniforme da Escola Cristã São Crispim. Seus pais compreendem e aceitam sua condição de transexual, mas a vida escolar tem sido muito difícil para eles. Repetidas agressões, discussões nas reuniões de pais, a eterna polêmica sobre que banheiro Lulu vai usar… a questão do nome social, que não se resolve (a Escola São Crispim aceitou colocar o apelido Lulu na chamada, até a questão ser resolvida, mas na documentação ainda consta Aloízio Silva). A matrícula foi um processo demorado e cheio de negociações. Lulu iria usar o banheiro da direção, os pais seriam informados de tudo que acontecesse na escola, numa clara prevenção ao bullying.

Lulu adentra a sala e se senta na primeira fileira, a menina que está ao seu lado faz uma expressão de reprovação e não a cumprimenta. Ela imediatamente se lembra do pesadelo e da sensação de opressão que a floresta passou a causar e de como tudo pode ser hostil: lobos, cobras e onças…

Por sorte, Lulu é ótima aluna e gosta de estudar, por isso enfrenta a situação. Ela sabe, aos onze anos, que as crianças trans sofrem demais na escola e a maioria não completa o ensino fundamental. Mas ela vai estudar, mesmo tendo que enfrentar uma floresta todos os dias e perseguir o sonho de ser psicóloga.

A professora tenta ser gentil com Lulu e superar seus próprios preconceitos (tenta se lembrar de tudo que a professora de biologia explicou aos colegas sobre transexualidade), mas está desconfortável com aquele menino de cabelos compridos e batom… Fica angustiada, mas acaba se encantando com as respostas da menina, sempre assertivas. Ao fim da aula, já está completamente maravilhada com a nova aluna e, em sua cabeça, já a tem como uma menina querida. Vai ser sua aliada daqui para frente.

Nossas escolas têm que parar de ser selvas!

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