Permita-se, então

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permita-se então
Imagem: Reprodução/Internet

Lá vem eu, mais uma vez, falar de Deus. Uns irão me dizer que já virei “irmão”, muito próximo da crença de um, acreditando mais ou menos no que é dito ou não dito. Alguns enxergarão em mim a liturgia, uma mudança de vida, um sorriso diferente. Outros dirão o contrário, que isso é mais um passo que dou, rumo ao que eu sou, uma dúvida constante. Posso ser ainda a terceira hipótese, sempre levantada e nunca falada, o mistério que se faz então. Não perguntaram para mim dessa vez. Mas eu respondi. Precisei dizer.

Saber ler é a melhor das formas de conhecimento que podemos ter na vida. Quando reunimos os fonemas, as letras, os códigos do alfabeto, tudo se explica mais rapidamente. Eu quero, eu posso, eu faço, são conjugações no fluir de nossa jornada, logo na infância, uma Aurora linda de um jardim que se foi. Para mim um pouco foi. Mas não é esse o assunto do dia.

Ler as frases, os textos, a lição da Professora, sempre é a ordem do dia. Compreender as abreviações, deixadas para nós, entre mensagens e recados, também. Como já ri disso. Mas rio também das leituras que faço na sequência: o sonho que tive de noite, a despedida de quem se foi, o reencontro esperado de alguém de tempos atrás. Ler é ir além das letras, penso sobre. Sim, é possível ler as pessoas também, codificação que fantástica é.

Uma vez li um autor do qual eu gostei muito. Chama-se Milan Kundera, e o livro o qual me apaixonei chama-se Imortalidade. Nele, o autor tcheco diz que as condutas humanas, os gestos, são imortais, como códigos que se repetem, de modo a compreender o texto em forma de alfabeto humano a sua frente. Depois que li Imortalidade, pude ler muitas coisas, além dos livros e textos. Comecei a ler o mundo, as pessoas e as relações que os cercam.

Alguns gestos são imortais, e fáceis de serem lidos, segundo o autor tcheco. Um olhar para uma montanha longe, depois do vidro, é reflexão. Se o olhar é para cima, dúvida é. Se desvia o olhar de uma pessoa, esconde alguma coisa. Se fita os olhos e se vê lá dentro do expectador, é paixão. Se vira as costas depois disso, é medo. Se volta, é saudade. Se fica, é amor. Se fica e mora, é por toda a vida. É verdadeiro. Kundera, seu danado, comecei a ler demais. Já li muitas pessoas assim.

Mas não é ainda sobre este assunto o tema por aqui. Espero que hoje seja um dia frio, para criar o ambiente propício para o que vou dizer: Deus fala com a gente também. Quando falo aqui em Deus, não estou dizendo do Criador de algum ismo. Não mesmo. Estou falando do Universo, das Forças que nos governam, do misterioso que sempre aparece quando nos aflige uma dúvida.

Quando eu era adolescente, ficava ouvindo rádio esperando as top dez músicas mais tocadas no país. E eu fazia assim, uma metódica a se repetir, quando queria que Deus me dissesse algo que muito me deixava inquieto. Eu esperava tocar uma música, uma em especial, na qual eu entenderia como um “sim”. Se aquela música tocasse, a que eu guardava em mim e dizia em voz alta, na solidão em que me encontrava com o rádio, eu saberia que poderia dizer sim, não, um perdão ou um pedido por ficar mais um tempo comigo.

Eu saberia que Deus daria a chance a mim de fazer acontecer, uma energia de empoderamento, o qual jamais poderia negar, diante do misticismo sagrado que tem nas ondas do rádio. Eu gritava: se tocar Beautiful, da banda Marilion, eu sei que ele me disse sim. Mas tem que ser agora, a próxima, para que eu tenha certeza, insistia. Na minha inocência, loucura mesmo, acreditava que esse improvável pudesse acontecer.

E aguardava o locutor do programa anunciar a próxima canção, aquela que poderia confirmar se era para ser ou não, o ato a seguir a se praticar. Um pedido para alguém, talvez. O narrador vinha, depois dos comerciais, e com aquela voz profética, anunciava These Days, do Bon Jovi. Eu amava a música. Mas não era a resposta que queria de Deus. Eu tinha quinze anos. Deus falou diferente para mim naquele dia. Entendi assim.

E fiz esse exercício por alguns anos, até compreender que minha leitura precisava melhorar. As respostas não estavam em Beautiful e, tampouco, em These Days. Estariam em outro lugar. Li o livro Dele, fiz alguns comentários a respeito com amigos meus, e tentei afinar minha fluência no idioma misterioso da vida. Com um pouco mais de experiência, livros lidos, e reflexões postas, arrisquei a ler o mundo de novo. Deus queria outra coisa de mim, pensei. Abri meus olhos do que estava diante de mim e permiti o acontecimento. A partir de então, tudo foi.

Caminhei muito, por muitos lugares, para entender isso. Portas se fecharam, janelas não se abriram, ônibus de viagem foram perdidos, além de vários adeuses que insistiram em ser para mim, apresentaram-se fugazmente. Entendi que aquela porta não era para eu entrar, que a janela não tinha um vento suave, que a viagem não era para ser, e o que adeus somente é quando um encontro um dia foi.

Depois de muitas tentativas, eu li o que o destino, o mistério, Deus, ou algo do gênero, queria dizer para mim: onde você estiver feliz, ali é o seu lugar. Depois disso, minha fluência na língua dos anjos ficou melhor. Não precisava mais do pop rock. Não para isso. Precisava do idioma dos Serafins. Ah, seu falasse a língua dos homens, se eu falasse a língua dos anjos, sem amor, eu nada seria. Um pouco de Legião Urbana e Paulo me ajudaram no processo.

Devemos lutar por aquilo que acreditamos, penso eu. Mas devemos saber se a luta é nossa também. Se for, se conseguir ler isso, iremos adiante no propósito. Porém, se as forças do Destino, do Universo, de Deus, da Música no Rádio, se os sinais são dados de que, talvez, seja o momento de parar, sabedoria para ler isso, necessário é. Sabe quando o martelo acerta mais a parede do que a peça de metal a fixar-se no lugar? Certamente, é uma inabilidade sua. Misticamente, Deus lhe diz: este não é o lugar. Filosoficamente eu diria: faça um curso de pregagem, que o acerto vem.

Eu fiz todos estes caminhos, científico, místico e filosófico. Acertei mais a parede do que o alvo. Contudo, no dia em que fiz a leitura do que estava na minha frente, pude entender que aquilo não era para mim, não era para estar ali, não era o meu lugar. Pode parecer que isso seja melancólico, um tributo às dores, um motivo para se ficar ouvindo música lenta o dia todo, tipo Cramberries ou Taylor Swift. Mas não é. Ao refletir mais de perto e entender que o cenário posto, a parede a frente, o alvo não acertado, as inúmeras tentativas em vão, significa que outro lugar te espera.

Significa que, às vezes, é importante dar a chance para algo maior, especial, a razão que faça sentido. Significa que, em algum momento da vida, é importante ouvir e ler a si mesmo. Interpretar seus sinais, o que de fato te faz bem. Quando, finalmente, li isso em mim, tudo ficou compreendido, as conjugações se deram, fonemas foram soletrados, e o rádio foi desligado. A jornada de mim acabou. Foi um final feliz, pode-se perguntar? Não, não foi um final feliz, tenho certeza. Sei que não foi um final feliz, pois, a partir da leitura de mim, do que eu aprendi, depois de tudo, aquilo foi, simplesmente…Um começo feliz….

Permita-se, então.

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