Somos da América do Sul. Eu sei, nós costumamos esquecer

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Somos da América do Sul. Eu sei, nós costumamos esquecer
Avenida Olegário Maciel, em Belo Horizonte. Foto: Divulgação

O Uber chegou enquanto amarrava o cadarço do tênis. Quando precisamos eles nunca se atrasam. Saí apressado com a estranha sensação que esquecia alguma coisa.

– Lucas?

– Isso! Desculpa a demora.

– Tranquilo… Eu só fiquei preocupado com aqueles dois sujeitos na esquina. Confesso que se eles tivessem vindo até o carro eu ia cancelar a corrida.

Eram quase onze e meia e conversamos sobre as mazelas da segurança pública até chegar ao local de embarque definido pela Buser. Saindo do carro, senti a calça descer pela cintura e me dei conta do que havia esquecido em casa.

Faltavam dez minutos para o horário marcado na passagem, o suficiente para um cigarro e um trechinho do Jornal da Globo. Meu isqueiro acabou o gás na primeira tentativa de usá-lo e vi o fogo em Brasília pela tevê enquanto comprava um Bic novo no caixa do  restaurante 24 horas no Planalto II.

O remake do Capitólio me fez fumar a palha em tempo recorde e já ia acender outra quando meu ônibus parou no estacionamento cinco minutos antes do previsto. A  pontualidade britânica e o golpismo norte-americano confundiram minha localização. Só voltei para Valadares ao ouvir do motorista:

– BH?

– Isso.

– Bagagem?

– Só de mão.

A mochila estava cheia, embora fosse voltar no mesmo dia. Um moletom para o ar condicionado, uma blusa de malha para a viagem de volta, e uma cueca, caso houvesse alguma emergência. As folhas em branco em um envelope eram as coisas mais relacionadas ao motivo da viagem, mas quase não ocupavam espaço.

Tenho uma relação caótica com a literatura. Leio muitos livros ao mesmo tempo, procurando algum que me prenda a atenção. Na dúvida de qual das leituras levar pra viagem, levei todos: um sobre sonhos e psicanálise, que gosto de ler antes de dormir; um romance de Eduardo Galeano, bom de ler em qualquer momento; uma novela do Kafka, que revira alguns entulhos na minha alma; e um de crônicas, com o empréstimo atrasado há duas semanas na Biblioteca Municipal.

Os quatro foram suficientes para encher a mochila. Porém, naquele instante antes de sair, olhei para o quarto a procura do que estaria faltando e peguei uma antologia do  Drummond por não ter visto o cinto em cima do criado mudo.

O ônibus arrancou e fui tomado por sentimentos de apatia e inação, também conhecidos como preguiça. Ignorei a biblioteca que carregava na mochila, abri meu Spotify e dormi sete músicas depois. Acordei numa parada em João Monlevade com Belchior dizendo que é “um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco e vindo do interior”. Dei pouca importância a esse verso que diz tanto sobre mim e saí para fumar a palha que quase acendi em Gevê, não fosse a desnecessária eficiência do motorista, com quem troquei meia dúzia de palavras enquanto ele tragava seu Marlboro.

– Falta quanto tempo pra gente chegar?

– Entre uma hora e vinte e cinco e uma hora meia… Com essa chuva não dá pra andar  muito.

– Pode ir devagarzin — disse em tom de brincadeira, mas achando meio chato tanta precisão — Meu compromisso lá é só às nove.

Pouco mais de uma hora depois, já estávamos dentro da capital. Desci no Terminal Turístico JK e o comércio ainda estava fechado. Decidi ir andando para a rodoviária, mesmo com a chuva fina que caía e a calça na eminência de ir parar no meu joelho.

Coloquei para tocar no Spotify uma playlist do Milton Nascimento. Abotoei o paletó para enfrentar a garoa. Bituca cantava em meus ouvidos: “Eu sou da América do Sul. Eu sei, vocês não vão saber” e eu via alguma poesia nas pessoas indo para o trabalho, disputando as marquises na calçada para não se molharem com aquela chuvinha de enganar bobo.

Pedi um café e um pão de queijo numa lanchonete da rodoviária. Tirei o envelope com as folhas em branco e fui preparar minha sustentação oral, que faria mais tarde na Francisco Sales. Enquanto escolhia quais argumentos destacar perante os juízes, uma mulher muito bonita sentou-se numa mesa próxima, ajeitando o mochilão entre suas pernas, cobertas por um jeans desbotado e uma bota de trilha nos pés completava o look de mochileira – estilo que costumo adotar nos dias de folga.

Ela pediu uma água à garçonete e ouvi seu português carregado de sotaque espanhol. De onde ela vinha? Será chilena? Talvez boliviana? Não consegui identificar. Observá-la dali não lhe traria constrangimento – fiz questão de certificar. Seu olhar estava disperso, como se aquele pequeno horizonte de pessoas chegando e partindo lhe dissesse coisas profundas sobre a vida. Uma decepção amorosa em Santa Cruz de La Sierra? Uma briga boba com a amiga em Santiago?

Distraído a imaginar complexidades naquela personagem, meu rosto denunciou a surpresa ao ver seus olhos castanhos flagrarem os meus a te observar. Voltei imediatamente para o papel a minha frente e fui incapaz de olhar outra vez. Antes de terminar minhas anotações, notei que ela se levantou e cheguei a vê-la com a bagagem nas costas, fone no ouvido e um livro na mão esquerda. Será que prefere ouvir Mano Chao que o rock inglês? Gosta mais das cores de Gracía Márquez que do cinza de Dostoiévski? Romantizei pela última vez enquanto perdia de vista o contorno do seu mochilão, que desaparecia entre os outros viajantes.

Me levantei da cadeira para ir ao banheiro e lembrei da frouxidão da minha calça. As ruas lá fora já estavam movimentadas e decidi procurar um cinto para quebrar esse galho, ou melhor, para que o galho não caísse. Avistei uma lojinha com um senhor na entrada, que me ganhou pelo seu “mineirês”:

– Fala, Jovem… Quê quí cê tá psisando? 

Seu Tonin me vendeu um ótimo cinto por um valor mais do que justo e suas palavras simples soaram mais doces que os poemas não lidos de Drummond. Quase ouvi ele dizer: “Vai, Lucas, ser gauche na vida”.

Paguei dois reais para usar o banheiro da rodoviária, ajeitei a gravata e penteei os poucos fios de cabelo, provocando uma risada contida do camarada que lavava o rosto ao meu lado. Peguei um 99 que me deixou em frente ao prédio do Juizado Especial. Assisti a  dezenas de sustentações orais de advogados bem vestidos e respirei fundo quando anunciaram minha vez. Ainda que tenha encarado tantas vezes aqueles juízes pela tela do computador — usando apenas uma samba-canção da cintura para baixo –, um friozinho abraçou meu estômago. Outra respirada diante do microfone e garanti uma vitória unânime no julgamento.

Estava quase na hora da semifinal entre Argentina e Croácia quando pedi um Indrive direto pra Savassi. Depois de pedir ao motorista uma indicação de barzinho para ver o jogo, o assunto me levou a lamentar novamente a derrota brasileira:

– Era só segurar por mais quatro minutos… Quatro minutos!

A prosa se estendeu e concordamos que torcer pra Croácia seria sinal de mau-caratismo. Quase chegando no barzinho que me indicou, o motorista pergunta:

– Cara, cê sabe de onde vem essa rivalidade entre Brasil e Argentina?

– Boa pergunta! Nunca tinha parado pra pensar… Vou dar um Google aqui.

Os três primeiros sites de procedência razoável que apareceram na tela do celular diziam quase a mesma coisa: a hostilidade entre os dois países surgiu da disputa entre Portugal e Espanha pela América do Sul e o auge desse conflito foi a Guerra da Cisplatina, que durou de 1825 a 1828.

– Ainda bem que não tenho nada com isso.

– Nem eu – consenti.

A tevê do Redentor já estava ligada, mas só transmitia as imagens, o som vinha da música ambiente que tocava no bar. Estranhei um pouco quando o jogo começou. Contudo, a  playlist me agradou tanto que sequer questionei o fato de não ouvir a voz do Milton Leite.

O bar estava quase lotado quando, aos trinta e um do primeiro tempo, Julián Alvarez foi derrubado pelo goleiro e o árbitro, em cima do lance, marcou pênalti pra Argentina. Apenas eu e outros dois caras na mesa ao lado comemoramos a penalidade e, no exato momento em que Messi chutou forte sem chances para o goleiro, a voz de Caetano Veloso ecoou magicamente das caixas de som:

“Soy loco por ti America
Yo voy traer uma mujer playera
Que su nombre sea Marti
Que su nombre sea Marti”…

Percebemos juntos esse capricho do acaso, nos levantamos e, quase aos abraços, parodiamos em coro: “que su nombre sea Messi; que su nombre sea Messi…”. Rimos muito da coincidência e os dois me convidaram pra mesa deles, de onde assisti o tango argentino bailar sobre os croatas.

Na viagem de volta, abri o romance de Eduardo Galeano quando o ônibus entrou na 381. A cada página lida minhas veias iam se abrindo e, em algum trecho entre Belo Horizonte e Valadares, senti no fundo do coração aquilo que já sabia em pensamento: sou latino-americano!

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