Que se viva tudo sem escassez

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que se viva tudo sem escassez
Imagem: Divulgação

Não tinha muita certeza do que escreveria hoje. Acordei cheio de dúvidas, sobre guerras e boletos, algo que sempre tem um ponto comum, e fui ao editor de texto. Estava com as incertezas em meu espírito, tais quais aquelas que se tem ao sair de casa, pisar lá fora, no mundo, e caminhar sem direção, sem uma rota pré-definida, ao menos. Com tais sentimentos, deixei de lado a escrita e fui passear, andar um pouco para pensar, algo que sempre faço sim. Fiz desse modo, então.

Eu gosto de caminhar, andar a pé, sentir as pegadas de mim tocar o chão. Conecto comigo mesmo e com o que está “rolando” na vida, em todos os aspectos. Confesso que sou um bom observador e, desse jeito, silencio ao ver para, após, ter minhas reflexões um pouco mais reservadas e contidas. Algumas são ditas. Outras são lidas. Uma e outra qual é? Dúvida que é, o que permanece ser.

Com os pés já no calor das ruas, os primeiros sinais de vivência que eu ouvi foram dos bem-te-vis. Estes pássaros místicos, que parecem querer dizer algo para gente, anuncia uma mensagem quando passamos por eles. Quando os vejo, fico um tempo com meus olhos fixos em suas cores, tentando decodificar o recado. Eu sei, isto parece loucura. Mas eu não contei para ninguém e, espero de ti, que guarde este segredo para mim. Quem sabe disso é o bem-te-vi que me viu encarando-o, e uma senhorinha que regava as plantas. O pássaro sabe que não sou louco. Já a senhorinha, eu não sei. Não posso garantir. Foi a minha primeira observação do dia.

Deixando a fauna sinfônica para trás, passei por árvores maiores, estas que dão o refrigério para a gente. Encostei em seu tronco, respirei o ar ameno envolto no ambiente, e notei duas mulheres questionando a fé. Uma dizia que o mundo foi criado por Deus, e a outra afirmava que a vida como conhecemos foi criada pelos homens. Ambas tinham seus bebês nos carrinhos, diante do sol, este iluminando-as sem distinção. A razão da primeira era a fé. A colocação da segunda era a experimentação. A minha dúvida gritava em silêncio que as duas tinham verdades. Meu coração queria alertá-las que elas teriam saudade, do dia de hoje que viveram. Mas isto fiz não. As mulheres foram embora dali, cada uma em seu mistério absoluto, um conceito irretocável para elas. Eu também saí. Não queria criar mais incertezas para mim sobre o que ouvi e fora dito. Ah, seu danado Dom Quixote! Tu sabes que não funciona assim. E não funciona mesmo, enfim. Eis que passo por minha segunda observação, letras que se articulariam na sequência de meu caminho.

O sol estava forte, não era verão, mas isso não tem muita importância quando a pele sente o queimar da estrela. Ao ver e sentir o suor em mim, lembrei de algo do passado, como em um deja vu, isto da reminiscência teimosa. Chorosa, pois, lembranças são assim, mesmo as felizes, nos dão o tempero das águas próprias de nós. Senti o sabor de mim, de meu passado, e quem por lá esteve. Na época em que vivi aquilo, dúvida eu tinha do futuro que viria, mesmo sabendo que amanhã já é aquele tempo. Mas o que eu não sabia também era que aqueles olhos diante de mim era o meu presente. Ah, isso a gente sente bem depois. Caminhando debaixo do sol, isso eu notei, mesmo depois de tantos anos, aqueles olhos não mais ver. Por que a gente sente saudade? Por que o tempo precisa ir embora? Não sei dizer. Saí de casa porque tinha incertezas. Precisei caminhar um pouco mais para que tais não fossem as mesmas. Tive outras dúvidas em mim. Coisa de filosofia seria? Não sei dizer. Coisas da vida devem ser. Isto não foi uma observação. Foi minha intuição dizendo coisas a mim.

Dobrei uma esquina e saí daquele rumo de antes. Bastava de senhorinhas e mulheres discutindo a razão de tudo. Encontrei outra coisa, então, em menos de um segundo. A imagem foi tão marcante que, por instantes, pensei ser eu ali perto, vivendo o momento, que tormento longe de ser era. Eu vi aquela coisa adolescente, de se descobrir um no outro, o sentimento que deixa embaralhada a mente. Isto eu sei que é paixão, amor pela primeira vez, mais importante que tudo, as razões do mundo, algo para sempre recordar. O menino passava suas mãos nas madeixas da menina, e a garota não deixava de olhar nos olhos dele. Uma harmonia acontecia, sem que qualquer dos dois dizer que ia embora do lugar, sem um amor para ser. Quando isso é assim, é pra valer. Dúvida não há de ter. Fiquei escondido vendo tudo isso, torcendo pela felicidade de desconhecidos, porque eu sei a importância do sentimento que vão viver. Estava eu em palpitações, na adrenalina inocente, transpirando loucamente, ansioso por ver o casal de enamorados selar o para sempre, na sensação pura de um primeiro beijo. Foi o que veio. Dúvida não poderia ser. Tive a primeira certeza do dia. Tive a razão da vida. Deixei o lugar e andei mais. Letras habitariam meu ser. Foi minha terceira observação. Aquela que esquenta uma gostosa sensação.

Perto de uma banca de jornais, dessas que resistem aos movimentos, encontrei dois homens discutindo os tempos. De um lado, um afirmava que aquela terra ocupada era um presente de Deus, e assim legítima era a posse daquela, do que verdades maiores não se podia ter. Do outro ponto da dialética, repousava ali um argumento histórico, vindo de muitos outros povos, que por aquelas mesmas terras passaram, vivendo suas vidas, tais quais as primeiras que aqui na crônica coloquei, de pássaros, senhorinhas, mulheres com bebês e a vivência adolescente de um primeiro amor. O homem da fé disse que Deus tudo pode, e violá-lo seria um pecado. O outro disse a mesma coisa, só que com outro nome. Ninguém concordou com um, que discordou do outro, e a nenhuma conclusão chegaram, muito ao contrário, uma confusão foi. Sem palavras, mas com vilipêndios e ofensas, a insensatez não pediu licença, transformando banca de jornais em trincheira de guerra. Os transeuntes deram sua opinião pelo que não viram e ninguém, ao certo, sabia o sentido daquilo. Nenhum deles sabiam a história, e eu vi de perto a derrota. Bem queria eu que fosse a única derrocada da hora. Mas não foi, eu sei que não. Eu fui embora, sabendo que amanhã teria notícia nova, de uma repetição de um mundo sem razão. Ah, não podia ser assim não. Foi minha quarta observação.

Andei muito neste dia e observei as diversas coisas do mundo. Meu silêncio conversa comigo nestes momentos, e diz para mim para que eu busque algum alento, pois, viver assim não é certo. Vivi as dúvidas de um dia, saindo de minha casa, minha sina, tentando retirar as incertezas no peito guardadas. Sem qualquer questão solucionada, assim pensei, ao ver todo o cenário da vida, prolixo em sua teimosia, de viver a cada dia, segundo um modo particular de ser. Isto é duro de escrever. Cansado de ver, sentei-me no banco da praça, na solidão do meu destino, alguns minutos sozinho, esperando uma resposta sobre tudo isso ter. Queria muito uma razão para compreender. Queria muito uma observação diferente destas para viver.

Olhei para o relógio, para os bem-te-vis, para as senhorinhas nos jardins, as mulheres e suas crianças, os homens na banca de jornal, e o sol, mais uma vez, insistentemente, iluminando e queimando a mim, e nenhuma resposta recebi ou escutei. Eu sei, mesmo com os anos no rosto, ao meu gosto, uma criança ainda sou. E esta inocência ainda me percorre, tentando entender os pormenores, de uma vida que não deveria ser assim. Não escondo uma lágrima em mim, ao pensar deste modo sim, ao fim que descubro que hoje não teria o que escrever. Isto que eu vivi não poderia ser, na poesia de ter, uma crônica para narrar. Decidi-me ir embora da praça, de repente assim, sem muito pensar, no que o futuro poderia me responder. Isto não foi uma observação. Foi meu eu querendo mais do que sobreviver.

Mas isto de tempo é estranho, algo que não sabemos o quanto, pois, futuro é o segundo seguinte, e não anos depois, como disse, pois. Com muito espanto, ainda na praça, tentando entender a graça, ao levantar-me do banco, sinto mãos em mim, como da saudade lá de trás. Uma coincidência, um tato que fez sentido, o sorriso ainda mais que isso, pois, ao ver aquele rosto de novo, de um tempo outrora, não pude acreditar que era comigo. As dúvidas do mundo foram embora, jornais foram descartados sem demora, não havia mais o que responder sobre o certo ou errado, pois, a saudade do passado, futuro é, o presente que aconteceu a mim. Incertezas eu não mais as possuiria, sabendo que a vida ainda dúvidas teria, além de discussões e fantasias, e fugir disso não há como. Eu sei este ponto. Isto foi a minha quinta observação. Isto foi a vida dando outra direção.

A caminhada me rendeu bons elementos para uma crônica. A escrita enriqueceu com esta travessia louca. Colocar à frente bem-te-vis, mulheres, conflitos, amores e saudades, deixam qualquer um confuso, como a vida gosta de fazer. E eu adoro escrever tais “insanidades”, com a ousadia que acomete a minha idade, de não ter preguiça de ver como se dão as coisas no dia a dia de uma rotina que vai e vem, apesar de mais vai do que vem. Amanhã eu sei que mais uma vez vou ver tudo de novo, de forma inédita. Vou alimentar-me destes sabores da vida, sem a menor pressa. Terei razões para gritar em silêncio, e silenciar para todos ouvirem. Observar pássaros pela manhã, ouvir uma dúvida feminina, que jamais distraí, e ver um primeiro amor sempre mais, uma lembrança pra não ir embora. Mas agora me despeço, para amanhã, sem demora, na primeira inquietude que vier, colocar meus pés para fora, no chão da vida esquentar, ter a oportunidade de ter tudo isso sem escassez. Quem sabe eu observe tudo, talvez. Quem sabe eu lembre de tudo, exatamente tudo, com rapidez. Quem sabe eu viva toda essa história de novo, mais uma vez.

Que se viva tudo sem escassez.

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