Acordo cedo para o dia ser. Escrever, pensar, pagar, amar. Abraçar também, fala prolixa e efêmera, sensação que grava memórias e saudades. Na minha vontade, depois de tudo assim despertar, me ponho a caminhar, exercitar o corpo, para o sufoco do dia ser menor. Menos um quiproquó. Pés lá fora no mundo sou.
E estou a ver sempre as sutilezas da vida. Na primeira esquina avisto um sabiá, piando ou cantando sem parar, para que o raiar do sol venha. Mas que pena, os anjos dos céus não quiseram assim hoje, açoite do pássaro que queria o brilho da estrela para chirriar seu canto. Foi para mim um espanto, águas das nuvens desceram lá de cima, e eu aqui na sina de compreender desígnios da natureza. Ainda vejo beleza. O sabiá assim mesmo cantou então.
Eu amo chuva, canceriano de junho sou, e me deliciei nessas águas serôdias. E me encantei com a prosa, de dois velhos amigos, sentados na praça, debatendo o cosmos. A chuva caía, a discussão ia, na versão de um contrária ao do outro e São Pedro deve ter visto, por isso apressou de início de uma água cair na quentura daquilo. Ouvia-se acalorados big bangs, na dúvida de Darwin, sendo que ouvi também um decálogo de quimeras promessas de terras prometidas. Amém não tinha. Mas se via a franqueza de uma boa amizade. Aquilo seria depois saudade. E me fui dali no tempo.
Corro para chegar antes da patroa acordar. Sou eu que apronto o café, na fervura de outra água, para que as águas dela sejam mais brandas. No banho do menino nosso que espirra água pra todo lado, lágrimas mais tarde haverá de lembrar como aquilo foi, suor do dia de cansaço de ser Mãe, Mulher e Amiga. Ai que vida, ela suspira, anotando eu sem ela saber como observo tudo em silêncio e não me aguento dentro de mim nas águas de minhas emoções, ondas altas em alto mar. Acompanhei na paternidade a gestação da vida, no ninho de águas do feminino dela ao meu lado. E foi um parto, no choro copioso, águas de uma nova vida ser. Nascer. Vivi isso também. Águas nesse dia tive, neném.
Mas ainda não cheguei em casa, corrida que se passa, na caminhada dos meus passos, o suor do meu rosto registrar o esforço de viver. Uma garota cantarolava sozinha um sofrer. Aproximei um pouco, ritmo de passos desacelerados, e perguntei o que houve. Ela respondeu com os olhos, águas que saíram dali e se confundiram com a chuva que caía, e eu não mais podia sair sem me deixar. Fiquei lá, acompanhando a tempestade, dizendo com meu gesto que aquilo era mais uma passagem de uma nuvem passageira. O olhar dela insistia que não, as mãos denotavam o quão por dentro era maior o volume de águas do que aquela chuva repentina. Não admoestei, e apenas fiquei, ouvindo e escutando, dizendo sem falar. Ela entendeu, virou para mim e me ofereceu o tato de seu abraço para que um laço se desse antes da despedida. Não sabia eu se a mais veria. Não sabia ela o quanto depois o sorriso se estamparia ao pôr do sol no fim da tarde de verão. Eram coisas do coração, órgão que bombeia água vermelha.
E minha caminhada continuou, nas pedras da calçada a ladear o Rio Doce, casa minha aqui das Minas Gerais. Aquelas águas, sinuosas por vários cantos das terras tupiniquins, recebeu outras tantas farsantes de ato espúrio em rompimentos ruidosos. E fico p(…), não atrevendo escrever o termo, mas pelo seu jeito de rir, vale o meio, seguindo eu a crônica e os passos sem parar. Fauna e flora que se perderam, humanidade que esqueceu, que um rio é um ser, povo Krenak que canta em sua dança xamante refrão por eles jamais esquecido: Watu é ancestral. E era para ser igual, as águas plácidas do Ipiranga e a ação de todos na defesa ambiental, Planeta Terra que é azul por causa das águas, útero de Gaia que gesta por longas épocas a humanidade, infantil por muitas vezes. Prosperidade apenas vem se houver biodiversidade, um pouco de amor e arte, geração próxima que espero cultuar o ser e não o ter. Águas limpas quero ver. Em meus olhos, ser.
Cansado já estava, horas que ultrapassavam a minha chegada em casa para tudo acontecer. Porém, eis que avistei, na parada de ônibus, trabalhadores esperando a vinda para que seja logo a chegada deles. O suor do rosto se mistura na despedida a outras águas salgadas de quem fica, mundo que tem a teimosia de ser seis dias e descansar um. Trabalho é necessário, mas amar não pode ser rápido, vida que hiato é e é passageira, como um transeunte na lotação. Bater carimbo, cartão, palavras do patrão, sorrisos cinzentos, dias nublados, olhos marejados de energia vital perdida e esperança finda. Fim do mês, dia do salário, semanas de atraso de contas que não se pagam, dos boletos aos abraços, estes que não houve. Fila pra comprar trigo, mãos para produzir o grão, e um bolso para represar o pão, divisão desigualitária. Solitária família que espera o retorno nas águas do banho ou do pranto, todas elas legítimas: é só uma a vida. Depois é promessa não cumprida sem salvação.
Recebo essas águas do batismo e me vejo ouvindo um cortejo fúnebre: alguém se foi. Um silêncio estridente, de muitos passos e gentes, caudalosas águas do fechamento, onde todos são iguais sem alento. A humanidade se reencontra, nessas horas que ninguém implora, a se ver nos olhos tudo o que poderia ser. As águas caem ao solo, ao solo vai a raiz e na raiz a semente, fecundar-se de novo a vida, que renasce, mais uma vez, em águas novas: choro na vinda e na volta. A tristeza pode aparecer, a alegria vem até sem querer, duas sensações que águas são também. Um Pai Nosso e muitos Améns. Essa despedida é uma água que não é fácil pra ninguém.
Chego em casa, águas de minha manhã, ao abraço do filho recebo as águas dele, confusas e quentes como nascentes em fontes termais. A Mulher me aquece, águas em outro estado físico, condensando minhas águas, para que elas se dissipem e voltem em outro momento. Vou para meus aposentos, refrigerar-me no banho, a rememorar o pranto de todos os rios que encontrei por hoje em um só oceano, mar de muitas ondas. De muitas contas, contos, histórias e despedidas. Águas que significam ciclos, rios, como ouvi um dia, águas da vida. Águas nas quais mergulhei e me permiti aprofundar, conhecer e ficar…
Por toda a minha caudalosa e corrente vida em águas jamais frias.