Feliz aniversário para quem?

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Não sou Jornalista por formação, mas esse ofício me fascina desde a infância. Driblei a impossibilidade de cursar na capital Jornalismo na década de 80, formando-me em Letras (muito menos pelo desejo de me tornar professora de Português do que pelo sonho de escrever textos de opinião) e pude me dedicar à leitura de obras literárias e dos melhores textos publicados em bons canais de informação.

Deus quis que por 30 anos, desde a graduação em Letras, eu exercesse com gosto e paixão a docência. Sou professora de Português ainda hoje e amo o que faço.

O convite do jornal eletrônico valadarense, O Olhar, para que eu assumisse, em 2021, aos 54 anos, uma coluna, chegou a mim como uma bicicleta sonhada como presente nos diversos Natais da infância é ofertada ao adulto, que a recebe como realização de sonho antigo.

De forma machadiana, o convite para redigir no O Olhar “une as duas pontas da memória”, contudo é inegável o medo da responsabilidade, do novo e de não ser redatora competente como a leitora que pude ser.

Lançada na descida do tobogã, sob efeito de adrenalina e com a certeza de que iniciado o percurso não há mais volta, cedo ao prazer de aprendiz neste ofício.

Terão espaço nesta coluna assuntos de interesse local, mesmo que tenham ocorrido em qualquer outro lugar do país e do mundo e que já tenham sido noticiados pela mídia, mas que sobre os quais seja oportuno lançar o olhar de mulher madura, perceber neles relação com o direito ou com o acesso à Justiça.

O primeiro texto, neste 30/1/2021, coincidiu com a data do aniversário da cidade de Governador Valadares, que completou 83 anos de emancipação política.

Poderia ter escrito nessa data sobre amenidades: sobre a história da fundação da cidade, os nomes atribuídos ao povoado do Porto das Canoas, o Santo Antônio da Figueira, a Figueira ou a Figueira do Rio Doce ou sobre seus pioneiros que para cá se dirigiram para formar a cidade.

Em seu aniversário, a cidade merece mesmo que sejam relembrados feitos quase heroicos de seus cidadãos ou relembrar a paisagem antiga da cidade com inúmeras madeireiras estabelecidas aqui para comercializarem as toras das árvores que cederam lugar para a pecuária; as oficinas de mica na região do “Sobe e Desce”.

Teria sido oportuno até falar da chegada da Companhia Vale do Rio Doce e seus trilhos cortando a rua Prudente de Morais, a estação ferroviária onde funcionam os Correios, os Coronéis, enfim a cidade sendo edificada, mas estas e outras histórias já foram belamente contadas por muita gente e decidi não dedicar este primeiro texto da coluna a esse fim.

Embora aniversários lembrem celebração de vida, ação de graças, comemoração, festa, presentes e demonstração de afeto, diante dos altos números de contaminados e de mortos pelo novo coronavírus, meu sentimento foi de ser este um momento inoportuno para frivolidades.

Penso mesmo não ter havido o que comemorar nesse 30/1/2021, em que o Brasil ocupava (e ainda ocupa) a triste e vergonhosa segunda posição entre os países em que mais ocorreram mortes por Covid-19, totalizando naquela data 224.504 mortos, e Governador Valadares seguindo com lotação  esgotada para leitos Covid em hospitais da rede particular e cerca de 70% de ocupação dos leitos para Covid na rede pública, tendo chegado a atingir na data de seu aniversário quantidade superior a 510 óbitos confirmados por complicações da Covid-19 e pelo menos cinco dezenas de óbitos em investigação.

A pandemia decerto impôs ritmo ao “novo normal”, moldou costumes e, desde 2020, apresentações artísticas em “lives” aqueceram, sim, muitos lares e foram companhia para as pessoas durante o isolamento social.

E foi nessa onda do “novo normal” que a Secretaria Municipal de Cultura, Esporte, Lazer e Turismo de Governador Valadares planejou eventos inusitados de comemoração do aniversário da cidade com manutenção do isolamento social, para não deixar passar em branco o aniversário da cidade em 2021.

A tradicional Corrida Rústica desta vez foi proposta em atividades individuais de corrida pelos atletas inscritos que deveriam agendar o horário de sua participação na disputa e comprovar o cumprimento das metas e o tempo gasto por meio de aplicativos e GPS para que pudessem receber medalhas, se fosse o caso.

Nesse mesmo molde de atividade esportiva “solo” em comemoração pelo aniversário da cidade foi proposto o “Desafio Bike”, com regras semelhantes às da Corrida Rústica, tudo isto para evitar aglomeração e contaminações.

A também tradicional “alvorada” com apresentação da fantástica banda da Lira 30 de Janeiro neste ano contou com a inusitada apresentação por meio de “live”, agendada para 8h da manhã.

Por fim uma derradeira apresentação artística se deu por meio de outra “live” no horário de 18h desse mesmo sábado. Resta saber se as “lives” atingiram seu objetivo.

Confesso que é difícil acreditar que os cidadãos tenham se esforçado para acordar cedo no sábado do aniversário da cidade para acompanhar em redes sociais “live” da apresentação da banda da Lira 30 de Janeiro, como também sou pessimista quanto ao sucesso das atividades esportivas feitas com agendamento de horário e comprovação pelo atleta de ter ele cumprido meta e tempo para a prática esportiva.

Festa organizada com dinheiro público, com dispensa de licitação nº 003/2021 e processo Administrativo de Compras 0024/21 em razão do valor (R$17.000,00) pago ao organizador das “lives”, conforme divulgado no Diário Oficial, e não consigo vislumbrar que os artistas convocados tenham sido democraticamente escolhidos a considerar o grande número de excelentes músicos como Marcelinho Tiradentes, Beto, Paulinho Manacá, Bebeto, Willer, Carlos Giacomin, Belu Sena, Bel Vilela, Elizete Pereira e tantos outros artistas não mencionados não por esquecimento, mas pela  impossibilidade de listar tantos nomes.

Não desprezei o lado bom dos eventos artísticos organizados para execução ainda que remota, porque reconheço ter sido uma excelente oportunidade de trabalho remunerado para os artistas durante a pandemia e enquanto não é implementado o auxílio emergencial previsto na Lei Aldir Blanc.

Penso que a cidade de Governador Valadares, além dos eventos planejados e executados pela Secretaria de Cultura, merecia de presente pelo aniversário o reconhecimento aferido por dados estatísticos de que as políticas públicas de saúde durante a pandemia estão no caminho certo e esse presente não foi entregue aos cidadãos valadarenses.

Presente mesmo foi dado pelo Município, provavelmente com recursos que deveriam ser destinados à COVID, a um dos hospitais da rede privada que recebeu, com dispensa de licitação na carona do Decreto de Calamidade Pública pela COVID, canalização de mais de 800 cirurgias eletivas de ortopedia que deveriam ter sido realizadas no Hospital Municipal a partir de abril de 2020, tudo isso em contrato de valor total de R$1.551.302,05 (um milhão quinhentos e cinquenta e cinco mil trezentos e dois reais e cinco centavos), com vigência durante 6 meses, “presente” renovado por mais 6 meses por força de aditivo de 14/10/2020, feito à “Dispensa de Licitação 0013/2020 e Processo 0192/2020, tudo isto publicamente divulgado no site da Prefeitura de Governador Valadares.

O cidadão valadarense também merecia presente nesta data, entretanto para aqueles que não possuem plano de saúde, se acontecer de sofrer qualquer enfermidade cujos sintomas se assemelharem aos mesmos sintomas da Covid-19, viverá um suplício para usufruir de seu direito constitucional à saúde e à vida, pois se ele se dirigir à Unidade de Pronto Atendimento – UPA – anexa ao Hospital Bom Samaritano, lá não será atendido, haja vista que os atendimentos na UPA são reservados por Decreto Municipal para casos que excluam por completo a Covid, exigindo que o paciente lá compareça já com resultado de teste de COVID (para atestar sua condição de não contaminado) ou não informe ao médico estar com febre, dor abdominal, sintomas gripais etc.

Da UPA, após negado o atendimento, o cidadão enfermo com alguns sintomas semelhantes ao da COVID-19 será encaminhado à Policlínica, local especificado no Decreto Municipal como “porta” de entrada para atendimento de pacientes com COVID, só que o cidadão, antes de ser examinado por médico para saber se está contaminado ou não por Covid, passará por triagem por enfermeiro que pode deliberar sobre a gravidade ou não do caso e, se entender que o enfermo não relatou sintomas gripais graves (falta de ar, por exemplo), poderá o enfermeiro encaminhá-lo à UBS, o antigo Posto de Saúde dos bairros, onde a novela para atendimento pode ser longa e fatal para o cidadão.

Parece ficção o relato, mas é a história real de via crucis desta colunista neste janeiro de 2021 à procura de tratamento para familiar com crise aguda de diverticulite, com risco de morte.

Feliz aniversário para quem?

** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do O Olhar.

 

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