Memória de Uma Tarde Cinzenta

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memórias de uma tarde cinzenta

Dizem que transformar um acontecimento em palavras e dar importância a elas, é uma forma de tratar um sintoma. Em razão disso, em um processo psicanalítico bem conduzido pelo fio da análise, o acerto de contas com o passado que (não) passou seria um dos efeitos terapêuticos mais esperados.

Este texto é resultado do registro de uma fala que pronunciei numa dessas sessões. Apesar do objetivo estritamente pessoal, que foi dar sentido a uma experiência perturbadora, o exercício de organizar pensamentos desorganizados acabou por torná-lo relativamente estruturado, possibilitando sua publicação.

Colocando em perspectiva, o fato ocorreu no final de 2017, dois anos depois do colapso do Rio Doce. Participávamos de um curso sobre o primeiro capítulo de O Capital. De antemão, justifico-me: a menção à obra que estudávamos não tem nada a ver com pedantismo. Quis dizer que lidávamos com um escrito bastante apropriado para aquela circunstância.

Naquele verão escaldante, típico de um ano em que o inverno se limitou a uma ou duas semanas de dias secos e parcialmente nublados, eu caminhava para a conclusão do antepenúltimo semestre de graduação.

No momento do acontecimento, estava junto de outro jovem: um professor temporário, cuja competência e entusiasmo eram proporcionais à precariedade do contrato a que ele estava submetido. Empolgados, deixávamos as dependências da Faculdade Pitágoras e íamos em direção ao restaurante universitário da UFJF-GV, onde, famintos, alimentaríamos da conversa que comumente prosseguia durante o jantar.

Entretanto, logo percebemos que algo estava estranho. Foi quando pausamos o trajeto que consistia em atravessar a via que ali não se abre a nenhuma outra, e tampouco serve de espaço para casas e povoações.

Ao olharmos para trás, como se procurássemos a alma encantadora da rua, à qual o cronista João do Rio se referiu, não a encontramos, mas tivemos uma inédita percepção daquela paisagem com que deparávamos diariamente.

Sem receio de me fazer parecer exagerado, interrompi nossa mudez dizendo: – Camarada, mas que tarde atípica! Como pode um calor desses, sem que se note qualquer vestígio de sol? E esse silêncio, a uma hora dessas?

Não sem antes expressar uma feição tão melancólica quanto aquela cena, imediatamente ele reforçou a minha constatação: – É, realmente. Está estranho. Parece que o tempo em que vivemos está cinza. Os dias estão cinzas, camarada.

Em meio a tantos assuntos dignos de preocupação, tais como carreira profissional, avaliações de toda a ordem, desemprego e boletos diversos, o próprio tempo foi suficiente para nos deixar abatidos. A realidade apareceu de maneira quase apocalíptica, contrastando o nosso ânimo e, de certa forma, confirmando muito do que especulávamos em sala de aula.

O prédio alugado que usávamos, isolado do resto da cidade, forma um complexo com o principal templo de consumo local. De tão protegido, tem como marca a ausência de árvores e o excesso de asfalto.

Como se não bastasse a hostilidade desse não-lugar, coube à perturbação sonora, emitida pela buzina de um trem carregado de minério, encerrar a apatia que nos tomou sob aquele mormaço. Então, pudemos retomar o trajeto.

Fernando Pessoa declarou uma vez, que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo. Hoje, entendo que não só fomos afetados por aquela representação visual. Éramos, nós mesmos, partes constituintes daquele cenário urbano melancólico, estávamos dentro dele.

Processávamos derrotas impactantes. A principal, que havia inaugurado a quadra política da qual até hoje não saímos, concretizou-se no chamado golpe a este simulacro de democracia. Esta, a mesma que, meses depois, serviria de terreno para o assassinato de Marielle Franco e para a eleição de Jair Messias.

Totalmente capturada, a república já se mostrava um tanto quanto louca. Por outro lado, perante o aumento da jurisdição e do policiamento da política, em âmbito local, presenciávamos a ascensão de um espírito despreocupado que resumiu a experiência universitária em festa. Significativas jornadas de lutas coletivas arrefeceram, restando apenas o silêncio a que fiz menção. Uma morte horrível.

Não tão quanto a de um outro amigo que perdemos no ano anterior. A violência, marca histórica das disputas por posse de terra nas profundezas da região a que Governador Valadares pertence, também não nos poupou.

Tudo isso se entrelaçou de tal forma que somente uma paisagem como aquela pôde sintetizar. Era o início do fim de um importante ciclo da minha vida, no olho de um furacão, cuja cor, aquela tarde se encarregou de mostrar.

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