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A estética da decadência (nem tudo que reluz é ouro)

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a estética da decadência
O monumento dos 80 anos de Valadares fica na Praça do Emigrante. Foto: Divulgação
“A cidade se encontra prostituída
Por aqueles que a usaram em busca de saída
Ilusora de pessoas de outros lugares
A cidade e sua fama vai além dos mares
No meio da esperteza internacional
A cidade até que não está tão mal
E a situação sempre mais ou menos
Sempre uns com mais e outros com menos…”
A Cidade, Chico Science.
“Todo jornalista que vira um bacana é um canalha.”
 Gilberto Felisberto Vasconcellos.

A vontade que motivou este escrito, emergiu no calor do estardalhaço gerado pelo outdoor pró-Donald Trump postado na cidade de Governador Valadares a pedido de um dos que daqui emigraram para residir nos EUA.

Entretanto, desde já, aos que aqui estão com expectativas de que eu me debruce em tamanha “cafonice” – como fora adjetivado nas redes sociais [1] –, vos digo que não se trata de fazer mais uma crítica ao fato em si. Até porque, essa atitude inusitada ganhou adesão a ponto do apoio a Joe Biden também ter sido bastante explícito: um outro outdoor foi posto no mesmo lugar escancaradamente em resposta ao primeiro, comemorando a vitória dos democratas. [2]

Para além dos memes e outdoors, e na contramão de quem considera a história desta cidade uma amenidade, venho convidá-lo a refletir sobre um fato anterior a esses, não tão comentado quanto, mas que assim como tais, evidencia a decadência econômica de uma cidade que já tivera um rico passado, quando o ideal de progresso imperou até ser tolhido pela incompletude de sua modernidade [3], isto é, tolhido pelo fato de sua riqueza natural ter sido empregada em atividades econômicas que conjugavam-se na função de levar a cabo necessidades estranhas à cidade.

Como exemplo, posso citar a exploração do seu solo para extração do mineral mica, excelente matéria-prima usada em aplicações de rádio frequência e na fabricação de isolantes térmicos, altamente demandado pelos EUA no contexto imperialista da 2ª guerra mundial. [4]

Pois bem, me refiro à instalação do monumento de comemoração dos 80 anos da cidade que alterou nome e paisagem da então “Praça dos Ferroviários” para “Praça do Emigrante”.

Provavelmente a alteração paisagística do lugar não passou despercebida por ninguém, pois como pode-se notar, a escultura que venceu o concurso para a construção do monumento comemorativo remete à cor reluzente do ouro, metal nobre de alto valor mercadológico. E pelas palavras do prefeito André Merlo, percebe-se que o propósito foi mesmo retratar a emigração como algo extremamente valioso:

“os emigrantes fazem parte da economia da cidade. São verdadeiros heróis que vão para mundo afora, principalmente para os Estados Unidos, às vezes separando da sua família. Eles precisam ser homenageados, porque são pessoas que trazem divisas, geração de emprego e renda na nossa cidade”. [5]

Não discordo da importância ressaltada, que fique claro. Tampouco nego a força de vontade – pra não dizer bravura – dos valadarenses que emigraram e continuam a emigrar em busca de oportunidades. Porém, nos ensina a sabedoria popular que nem tudo que reluz é ouro.

O que me intrigou desde a inauguração do monumento em 30 de janeiro de 2018, enquanto estudante do curso de Administração da UFJF/GV que por ali passava quase todos os dias, foi ver a fama de exportadora de brasileiros ganhar conotação de uma ideologia propagandeada pelo poder público materializada na paisagem urbana com chinfra de virtude citadina.

Nesse período, dedicava-me a elaboração da minha monografia de conclusão de curso, buscando entender pela história da cidade o papel que tivera a elite econômica local para a consolidação de uma dinâmica econômica de base primária e dependente; ora do complexo siderúrgico do próprio Vale do Rio Doce; ora de cidades em que houvera concentração de atividades industriais mais avançadas; ora até mesmo de outros países, como no caso da mica. Ao me deparar com a referida mudança paisagística, imediatamente veio-me uma das principais lições de Milton Santos sobre o tema.

Para esse grande pensador da realidade brasileira, por vezes ignorado até por muitos dos que anualmente o glorificam no dia da consciência negra, quando estamos diante de uma paisagem “não temos direito senão a uma aparência”. A paisagem assim teria duas faces: a verdadeira (sua essência), que não se entrega imediatamente ao nosso campo de visão, e a face visível, enchafurdada de ideologia. [6]

Detrás desse discurso que busca firmar uma imagem pseudorreal da cidade, que só faz sentido na cabeça daqueles que a tratam como um verdadeiro negócio (um negócio chamado Governador Valadares), está o fato de que o movimento migratório, tão vangloriado, aparece em sua trajetória muito por conta da opção da própria elite local de outrora em preservar o status quo, impedindo o surgimento de condições que fossem capazes de alterar o caráter extrativista e predatório de sua dinâmica econômica entre as décadas 40 e 60.

De acordo com o historiador Haruf S. Espíndola, nem mesmo o esgotamento dos recursos naturais fizera com que os empresários adotassem investimentos de capitais para se obter ganhos de produtividade. Aqueles que não optaram por migrar para onde pudessem seguir agindo do modo que na cidade já não seria mais tão conveniente, fizeram da pecuária e/ou especulação do solo urbano suas atividade principais; quer dizer, atividades incapazes de absorver todo o contingente demográfico que havia afluído à cidade no período anterior, quando se deu o auge de seu dinamismo econômico. [7]

Como bem destacou o ex-secretário da Associação Rural de Governador Valadares, Rubens Alves Barroso, em uma entrevista de 1986 realizada pela também historiadora Maria Eliza L. Borges, “[…] o fazendeiro não queria investir. Só queria lucro, mal davam sal ao gado. As fazendas de Governador Valadares não tinham nem sede, era só uma casinha e em torno dela não tinha nada plantado”. [8]

Nesse sentido, até concordo que há certa coerência histórica na alteração do antigo nome “Praça dos Ferroviários”, já que esse remetia a um outro tempo em que a crença no ideal de progresso ainda imperava na “Terra da Promissão”. Nesses termos, aquele nome não fazia mais tanto sentido perante o fantasma do enguiço econômico que até hoje assombra a cidade de Governador Valadares, à revelia do city marketing institucionalizado. O que de forma alguma torna a estetização de seu fracasso econômico menos estarrecedora.

Por fim, encerro esta coluna, ou melhor, esta pequena reflexão, com o oportuno comentário de uma “superfã” da página facebookiana “Fotos antigas e atuais de Governador Valadares MG”, redigido em referência ao resplandecente monumento, expressando melhor o que procurei destacar através deste escrito:

“Representa nós que saímos com a mochila nas costas em busca de oportunidade que a cidade nunca pôde nos oferecer. Alguns, infelizmente, nunca chegaram à terra do sol. Seus corpos viraram cinzas na área do deserto”. [9]

Referências:
[1] _ https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/10/16/interna_gerais,1195396/outdoor-de-apoio-a-trump-divide-moradores-de-governador-valadares.shtml
[2] _ https://www.braziliantimes.com/brasil/2020/11/25/radialista-brasileiro-que-mora-em-massachusetts-banca-outdoor-em-governador-valadares-para-celebrar-derrota-de-trump.html
[3] _ http://periodicos.pucminas.br/index.php/Arquiteturaeurbanismo/article/download/817/782
[4] _ https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51743342
[5] _ https://g1.globo.com/mg/vales-mg/noticia/concurso-e-lancado-para-construcao-de-monumento-em-homenagem-aos-80-anos-de-governador-valadares.ghtml
[6] _ https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=E3QBIRjKh5AC&oi=fnd&pg=PA13&dq=pensando+o+espa%C3%A7o+do+homem&ots=yV52CiSuqj&sig=8KAX6XAWAd-vGOuIhPe4ISgPqcQ#v=onepage&q=pensando%20o%20espa%C3%A7o%20do%20homem&f=false
[7] _ https://static1.squarespace.com/static/561937b1e4b0ae8c3b97a702/t/5724a7fa22482e5c002898aa/1462020093175/7_Espindola%2C+Haruf+Salmen.pdf
[8] _ https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882004000100012&script=sci_arttext
[9] _ https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=1256937861106393&id=324319641034891&comment_id=1266436573489855
Fonte da imagem que ilustra o texto: https://www.valadares.mg.gov.br/detalhe-da-materia/info/o-turismo/22518
** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do O Olhar.

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