Outro dia, me emocionei ouvindo o hino nacional, o que não acontecia há um bom tempo, confesso. Isso porque, assim como a bandeira e a camisa amarela da seleção, nosso hino foi capturado por um pessoal que professa um amor meio capenga às maravilhas e contradições desse canto da América Latina, onde as “fake news” são escritas em português.
Por ouvir tantas vezes o hino em cenários que revelam que a crise é também estética, certa vez sugeri que ao invés da canção oficial passássemos a cantar a música “Brasil Pandeiro”, dos Novos Baianos. “Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor”, me soava muito mais patriota que a cena fictícia da independência, cantada nos primeiros versos: “Ouviram do Ipiranga às margens plácidas”.
Embora os livros didáticos de História contem coisa diferente, a verdade é que, apesar do “formoso céu, risonho e límpido”, o quadro, “Independência ou morte” – finalizado em 1888 por Pedro Américo e que ilustra nosso imaginário dessa cena histórica – esconde verdades pouco conhecidas.
Um exemplo disso é que, oficialmente, quem declarou a independência do Brasil foi Maria Leopoldina, esposa de Dom Pedro I. Por estar em campanha pelo país para manter a unidade e garantir uma “independência ordeira” – ou num português mais direto: em negociação com os senhores e traficantes de escravos para assegurar que a escravidão não seria abolida com a autonomia da colônia –, Pedro se encontrava longe da corte no Rio de Janeiro quando recebeu a carta de José Bonifácio, que o aconselhava a agir rápido, pois a Coroa Portuguesa já tentava reverter seus planos de soberania.
Portanto, coube à Maria Leopoldina a proclamação burocrática, pois ocupava a regência interina na ausência de seu “conge” – que nem deve ter conseguido bradar qualquer grito de independência, devido uma disenteria que lhe acometeu na viagem, montado no lombo de uma mula.
Ou seja, a independência veio, mas a abolição não. Com isso, olhando pro passado, vemos que o Brasil nasce como Estado-Nação a partir do compromisso de manter o comércio negreiro, resultando em nosso vergonhoso título de último país do Ocidente a abolir a escravidão – como se o presente não proporcionasse vergonha suficiente.
No final de julho de 2018, em entrevista ao Roda Viva, Jair Bolsonaro foi questionado sobre suas intenções em relação às cotas nas universidades públicas, tendo em vista que pesquisas apontavam que o desempenho dos cotistas já era igual ou superior ao desempenho dos não cotistas. Jair, no auge de sua sabedoria, chegou a dizer: “Os portugueses nem pisavam na África. Eram os próprios negros que entregavam os escravos”; depois de falar que é genro do Paulo Negão.
Como a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa, em maio de 1823, quase um ano após o sete de setembro de Dom Pedro I, foi instaurada a Assembleia Nacional Constituinte, para elaboração da nossa primeira Constituição (promulgada em 1824) e um dos parlamentares, o Maciel da Costa, deputado mineiro, disse o seguinte: “Os africanos vêm porque seus bárbaros compatriotas os vendem”; justificando sua posição antiabolicionista (qualquer semelhança é mera coincidência).
Da chegada dos portugueses até o sete de setembro golpista de Bolsonaro, lá se vão 522 anos, dos quais 388 foram de escravidão. Ainda assim vemos tanta gente negar a influência desse período nos ínfimos 134 anos que sobram nessa conta.
Ora, se o slogan é: “Brasil acima de tudo”, de qual Brasil eles estão falando? Daquele extrato do Brasil que enricava com trabalho escravo? Daquela pequena porção de brasileiros que vai morar em Miami se seu candidato perder? Dos poucos idiotas que andam com seus Porsches nas ruas esburacadas de Valadares?
Se o assunto é dinheiro (e sempre é o assunto), esses nunca estiveram abaixo de nada!
Em 1988 – um século depois de abolida a escravidão –, no mesmo Roda Viva em que
Bolsonaro demonstrou seu grande conhecimento de História, Darcy Ribeiro, antropólogo e mineiro de Montes Claros, bradou com firmeza sobre o Brasil: “Eu vi o mundo inteiro (…) não há lugar melhor pra fazer uma país do que esse. Eu andei no exílio… Anos e anos de exílio. Não há lugar para fazer um país melhor. Mas tem uma classe dominante ruim, ranzinza, azeda, medíocre, cobiçosa, que não deixa o país ir pra frente”; apontando os verdadeiros culpados de nossas mazelas, as de ontem e as de hoje.
Djonga, famoso rapper mineiro e negro retinto, fez um show em abril deste ano, no mesmo Mineirão dos 7 a 1 e usando a tradicional amarelinha da seleção brasileira. Para quem pensou que ele virou um “mion”, se liga no que ele disse: “Com essa camisa aqui é mais gostoso de ouvir vocês gritando, porque os caras acham que tudo é deles, eles se apropriam do tema família, eles se apropriam do nosso hino, eles se apropriam de tudo, mas é o seguinte, é tudo nosso, e nada deles”; e fogo nos racistas!
A estética patriota que virou moda, apesar de ultrapassada, encurralou meu patriotismo, deixou tímido meu amor à pátria. Querem que nossa bandeira seja sinal de idolatria, que nosso hino seja fundo musical da barbárie.
Contudo, resisto… Como outro dia, em que uma lágrima desceu quando vi uma imensa bandeira do Brasil, no centro da cidade, a tremular ao vento com a Ibituruna reluzida de sol ao fundo enquanto João Gilberto cantava, docemente e a seu modo, no meu fone de ouvido: “Brasil de um sonho intenso, raios vívidos, de amor e de esperança, à terra desce…”.