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Coragem, escreva!

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Imagem: Reprodução/Internet

Este escrito é uma adaptação de uma atividade acadêmica, em que busquei torná-la mais próxima de uma resenha jornalística. Resumidamente, esSe gênero se caracteriza por uma notícia reflexiva sobre obras artísticas e produtos culturais, cujo propósito é aconselhar seus consumidores, mas que não deixa de ser tributária da crítica.

Ao longo dos próximos meses, a temática deste espaço sofrerá alterações deste cunho mais vezes. Não que a luta de classes no chão da cidade tenha esfriado. Na verdade, os últimos fatos provam o contrário.

Notem a rejeição popular avassaladora aos marcos representativos postos no espaço urbano da cidade, que não simbolizam o que ela é para a maioria de seus habitantes.

Ocorre que, dada a minha carência de tempo livre – ultimamente tenho me ocupado bastante com as belezas de Jequitinhonha –, além da distância que agora me impede de  acompanhar com devida atenção aquelas coisas que só acontecem aí, por tudo isso, este texto não tratará da crise do valadarense, que, primordialmente, é uma crise de identidade.

Desta vez o assunto é o próprio ato de escrever. Tenho a escrita como uma atitude de resistência a essa sociedade do desempenho. A paciência e a persistência que a criação de um texto requer, opostas à ideia de produtividade, possibilitam-nos arrancar tempo de um mundo frenético. Façanha com a qual o livro Truques da Escrita, de Howard Saul Becker, tem muito a colaborar.

Logo de cara, chamou-me atenção o fato de a relevância teórica do livro não ter sido um empecilho ao uso de uma linguagem simples. Sabemos que a coesão entre forma e conteúdo é algo raro nos dias de hoje.

Essa lição implícita impactou-me positivamente, apesar do “tom” de sua escrita, que, por vezes, quase humorístico, despertou-me algum incômodo – o que diz mais sobre a minha falta de hábito em lidar com o tipo de escrita reivindicada pelo autor.

Em poucas palavras, considerei sua leitura útil e reflexiva. Ainda assim, penso que, em conjunto com a obra Redação Inquieta, de Gustavo Bernardo, o livro pode nos propiciar ganhos ainda mais substantivos. É o que tentarei demonstrar aqui.

De modo geral, e repetindo o que consta em seu próprio título, o objetivo do livro é nos fornecer alguns truques de escrita para tarefas como a elaboração de uma dissertação de mestrado. Em outras palavras, o livro, que é “uma espécie de terapia diletante aos desesperados por alguma ajuda”, oferece-nos dicas e orientações para vencermos as barreiras, pressões e vícios que comumente travam ou empobrecem o ato de escrever.

Em que pese a pretensiosa intenção do autor em colaborar sutilmente para que possamos honrar a escrita daqueles sociólogos brasileiros (Sérgio Buarque de Holanda e Antônio Cândido), cujas formas lhe fascinam, não há muito mais o que dizer sobre o objetivo da obra.

Antes de relatar os principais conhecimentos que pude adquirir ao lê-la, cabe ressaltar como o autor persegue o objetivo supracitado. Pois esse caráter é o que distingue o livro de outros manuais de redação, alçando-o a um patamar superior.

As debilidades da assim chamada escrita científica são analisadas a partir de sua experiência acadêmica e profissional, sempre as relacionando com o modo em que se encontra organizada a nossa vida em sociedade. Ou seja, no livro, há um diálogo entre os problemas observados em sala de aula com questões sociais mais amplas.

A meu juízo, a luta de Becker contra a dificuldade de seus alunos em lidarem com o medo de se expressarem por meio da escrita configura-se na lição mais poderosa. No curso por ele ministrado, que resultou no primeiro capítulo da obra, o medo de seus alunos, em si, não era o inimigo a ser combatido. O problema começava pelo não reconhecimento desse medo de escrever.

Se não o reconhecemos, tampouco podemos entender sua emergência, muito menos enquanto fenômeno social complexo que se manifesta nessa sociedade, tal qual é a questão da comunicação.

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São Mateus e o Anjo, de Caravaggio, óleo sobre tela de 1602. Imagem: Reprodução/Internet

Na ausência de um diagnóstico apropriado, resta-nos a alegação de que sofremos de falta de dom ou técnica, quando não, de hábito de leitura, como se não existissem excelentes leitores que são péssimos escritores.

Em vez de erradicá-lo, isto é, sua opção por naturalizar o medo que temos de escrever, mostrando que por ele somos todos afetados – muitas vezes não o notamos por crermos na falsidade de que a escrita acontece de forma mágica para indivíduos predestinados, autossuficientes –, o autor contribui para que possamos fazer desse medo uma virtude.

Argumenta que, o modo mais seguro de garantir que um texto não revele a capacidade expressiva de quem se propôs a escrevê-lo, “é não escrever nada”. Aqui começa o diálogo com a obra Redação Inquieta, de Gustavo Bernardo, pois como afirma este último, “quem cala, não consente, mas está se guardando ou se submetendo”.

Nessa perspectiva, o ato de escrever seria, antes de tudo, uma questão de desejo. Desejo de intervir no mundo, uma questão de autoafirmação perante possíveis leitores: “quem não se afirma é o oprimido, é o submisso, o que se encontra caído ao chão à espera das ordens” (BERNARDO, 2010).

Não só a ausência de expressividade escrita pode ser assim explicada. Afinal, qual seria a causa, se não essa, do vício de usarmos a voz passiva, essa falta de coragem em revelar o agente das sentenças que escrevemos? Bem como, os cacoetes inúteis, ou mesmo “algumas daquelas longas expressões redundantes”, alvos da crítica de Becker, típicas de quando, para não nos comprometer, evitamos dizer, escrevendo-as?

A falta de clareza, quando acomete uma coletividade de escritores, também revela um problema social crônico, afirma Gustavo Bernardo. Na educação tradicional, os que escrevem sem clareza são punidos com nota baixa. Ao longo da vida, eles podem achar que, assim fazendo novamente, cometeriam uma espécie de crime merecedor de punição.

Por isso, não é raro “a expressão truncada refletir, sintomatizando, apontando outras trancas, outros trancos, como baixa autoestima e pavor do julgamento alheio” (BERNARDO, 2010).

É possível complexificar ainda mais a questão da clareza recuperando Becker, autor do livro aqui propagandeado. Para ele, a falta de clareza é um problema, mas a busca por solucioná-la pode revelar outro, que também nos leva a questões sociais mais amplas.

A insistência na clareza e no acabamento nas fases iniciais de elaboração de um texto, em muitos casos, é fruto de uma falsa premissa: a de que existe uma “resposta certa”, uma “melhor maneira” de realizar o ato de escrever.

Para Becker, os estudantes e acadêmicos que relutam em reescrever o que acham que escreveram, provavelmente, de algum modo, internalizaram em suas subjetividades as consequências da posição subordinada a que estiveram submetidos na hierarquia da instituição escola, ao longo de suas trajetórias.

Como nunca viram seus professores ou autores dos livros que tinham em mãos, com a “mão na massa”, não conceberam que os tais também refazem, reescrevem, reorganizam as ideias desorganizadas que são postas inicialmente no papel em branco.

Se encaramos a expressão pela escrita assim, nos moldes de uma prova, o próprio ato de começar a escrever um texto qualquer torna-se torturante, dada essa busca incessante pelo suposto jeito certo, desde a primeira palavra.

Essa concepção alienada, que ignora todo o trabalho que antecede a versão final de um texto como este, manifesta-se até na tentativa de esboçar aquilo que queremos escrever. Em tais casos, o esboço é um roteiro para evitar o erro.

Enfim, a busca por não fracassar condena o erro de maneira neurótica, e  consequentemente, a nossa expressividade pela escrita. “O remédio é experimentar e ver por si mesmo que não dói”, diria Becker. Eu assino embaixo.

Retrato de Mark Twain (1835-1910), escritor antirracista, trabalhando. Imagem: Reprodução/Internet

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