Faltam poucos dias para um dos principais e mais longevos acontecimentos da cultura do povo. Tendo como sede a cidade que recebeu a sua primeira edição, em 1980, o Festivale vai reunir, pela trigésima oitava vez, cantadores, músicos, atores, folcloristas, escritores, poetas, contadores de história, artistas de toda estirpe e demais apreciadores para reafirmar e renovar as tradições de um povo que, nos dizeres de Gonzaga Medeiros, “vale mais por aquilo que é do que por aquilo que tem”.
Festival que não é somente “de”, mas que é “da” Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha, a realizar-se de 23 a 29 de julho, em Itaobim, a terra da manga. Essa diferença semântica tem a ver com um aspecto importante dessa celebração que marca a identidade do Vale. Assinalando que as práticas que mantêm o Festivale pertencem à cultura popular, o seu nome destaca o protagonismo do povo e de suas entidades representativas na realização do evento.
Também não há como falar do Festivale sem mencionar a abrangência espacial que a sua lógica itinerante possibilita. A cada ano se altera a sede desse evento que nunca respeitou as fronteiras que nos separam para finalidades político-administrativas. Assim como na perspectiva das águas do rio que banha o cerrado, a caatinga e a mata atlântica, de Serro-MG a Belmonte-BA, da nascente à foz; do Vale do Jequitinhonha mineiro ao baiano, o Festivale é um só.
Soma-se a essa diversidade, a sua abertura, típica das “sociabilidades quentes”, espaços formados pelo sentimento de pertencimento comunitário em movimento, nos quais aquele que chega é recebido de modo caloroso. Segundo Carlos Mota, estudioso dos hábitos, costumes e da linguagem jequitinhonhense, a “cultura da região é diferente” porque não foi derrotada pela “cultura individualista que tomou conta do mundo”.
Não por acaso, tanto o Festival da Canção como a Noite Literária, tradicionais concursos que compõem a programação do Festivale, berços de novos talentos e de grandes nomes como Cláudio Bento, Beth Guedes, Paulinho Pedra Azul e Rubinho do Vale, têm editais abertos a pessoas de todo o Brasil. Idem para as oficinas temáticas e para a Feira de Artesanato, que também é vitrine para a produção artesanal de outros lugares.
O Festivale surgiu no contexto da “modernização autoritária” do país. Levada a cabo pelos governos militares, produziu consequências desastrosas na região. Por um lado, alterou as formas de convivência e de produção historicamente constituídas; por outro lado, acentuou os problemas que a grande mídia alardeou para justificar a entrada de mais empreendimentos ineficazes em desenvolver a região, mas que foram eficientes em transformar parte de seus ecossistemas em lucro para poucos.
Nas cabeças inquietas de Aurélio Silby, Carlos Figueiredo, George Abner e Tadeu Martins, quatro jovens filhos do Vale que estudavam em Belo Horizonte, essa “conta” não fechava.
A fundação do Geraes, um jornal independente que deu voz a associações de pedreiros, lavadeiras, artesãos, sindicatos e casas de cultura foi o primeiro passo para pôr em xeque a contraditória ideia de “vale da fome”. Além de mostrar e discutir a realidade do Vale sem sensacionalismos, os jovens enxergaram na cultura uma poderosa arma política para lutar contra a ditadura e organizar politicamente o povo. Desse esforço bem-sucedido, o Festivale foi o principal desdobramento.
De lá pra cá, muita coisa mudou. Várias manifestações artísticas e culturais produzidas na região ganharam reconhecimento internacional. Além disso, os indicadores que figuravam como pesadelos na mentalidade jequitinhonhense, tais como o PIB e o IDH, hoje são questionados por pesquisas científicas que demonstram a incapacidade desses índices em captar a riqueza das pescas, das feiras livres pujantes e da agricultura familiar, que juntas aquecem a economia local, melhoram a relação comercial entre os lugares e a qualidade de vida dos que habitam a região.
O que não muda é a ansiedade que afeta os festivaleiros à medida que o encontro se aproxima. Por isso, aproveito e encerro este texto com o meme que se tornou uma forma bem-humorada de lidar com a “saudade que maltrata e [nos] faz olhar no calendário”, cantada por Verono em sua bela Jequitivale. É que eu também “já estou com a roupa de ir”!
Para mais informações, consulte a FECAJE – Federação das Entidades Culturais e Artísticas do Vale do Jequitinhonha clicando aqui ou acesse o perfil oficial do 38° Festivale no instagram clicando aqui.