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Governador Valadares, 31 de março: nada a celebrar

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Governador Valadares, 31 de março: nada a celebrar
Manifestação pró-64 em frente ao Tiro de Guerra de G. Valadares em 31/3/2021. Foto: Divulgação

Trinta e um de março é uma data emblemática para Governador Valadares. Antes de tudo, obviamente, por ser mais um triste dia da fase mais virulenta da pandemia causada pelo novo coronavírus, este patógeno que transformou nossas vidas no contexto de uma “sociedade pirada com elevado avanço tecnológico” [1].

Considerando os dados divulgados até o dia 26/03, o município apresentava um índice de 2,43 mortes para cada mil de seus 281.046 habitantes, revelando a intensidade com a qual os óbitos em decorrência da Covid-19 vem impactando sua população. A título de comparação, o valor se equiparava ao dobro da mortalidade pela doença em Montes Claros (413.487 hab.), cuja taxa era de 1,21, superando também Teófilo Otoni (140.937 hab.) e Ipatinga (265.409 hab.), que até então, apresentavam taxas de 1,56 e 1,91 mortes para cada mil habitantes, respectivamente.

O percentual de letalidade, que estima a gravidade da doença pela proporção do número de vidas ceifadas em relação à totalidade de infectados, era de 3,64%, mantendo Valadares acima de todos, ao superar novamente as taxas de Montes Claros [1,96%], T. Otoni [2,75%] e Ipatinga [2,16%].

No âmbito nacional, sabemos que fomos guiados por um governo que conscientemente optou por tratar a peste como uma gripe. Não é preciso ser especialista para notar a impossibilidade de se ter um isolamento social adequado em um país tão desigual, atravessado pela pobreza e desemprego, sem que haja apoio econômico efetivo do Estado às famílias e empreendimentos mais vulneráveis. Portanto, é inegável que todo esse descaso contribuiu de forma substantiva para o colapso de municípios como Valadares, bem como para a asfixia de tantos outros brasileiros(as).

De todo modo, uma pergunta não se cala: por que cargas d’água essa desgraceira assumiu aqui uma dimensão tão catastrófica, fazendo da cidade espelho fiel do pior país do mundo no quesito combate à pandemia [2]?

Sem dúvida, são vários os fatores a serem considerados por quem se atrever a respondê-la. Muitos, inclusive, são pontuados cotidianamente pelos munícipes em cada postagem sobre o tema nas páginas oficiais da prefeitura. E a população não somente aponta os erros; excetuando umas e outras apologias ao uso de substâncias destinadas ao tratamento de patologias banais, como sarna, caminhos interessantes são propostos, para até que tenhamos a sonhada imunidade pela vacinação, mostrando que ainda nos resta solidariedade e senso de coletividade.

Todavia, no que se refere a tais fatores, a data de hoje remete-nos a um aspecto relevante para entendermos, pelo menos, o alinhamento de parte da comunidade valadarense às ideias negacionistas da extrema direita, se for mesmo verdade que “[…] o momento passado está morto como tempo, não porém como espaço; […] uma vez que está sempre aqui e participa da vida atual como forma indispensável à realização social” [3]. Me refiro ao conservadorismo local, escancarado nos idos de 1964.

O golpe militar de 31 de março impediu a concretização das almejadas reformas de base, cujo carro-chefe era “[…] a reforma agrária que visava eliminar os conflitos pela posse da terra e garantir o acesso à propriedade de milhões de trabalhadores rurais” [4]. Governador Valadares, enquanto um dos epicentros desses conflitos, “[…] ‘cheirava’ a pólvora e chumbo […] com pistoleiros atuando a serviço dos poderosos” [5]. Dizem que para cada pedido de reforma agrária, havia “[…] uma senhora com um rosário à mão orando contra os “comedores de criancinhas” e “incendiários de Igreja” [6].

No imaginário de parte dos valadarenses, o desfecho desse episódio figura como uma suposta “Revolução de 1964”; prestígio este que está materializado na paisagem urbana da cidade [7]. Em sentido semelhante, 57 anos depois, o Ministro de Estado da Defesa do governo em que o presidente é claramente adepto à disseminação de informações duvidosas [8], em meio a maior crise sanitária e econômica da nossa época, sugere em seu primeiro ato público a celebração dos “acontecimentos daquele 31 de março” [9].

Resta saber: comemorar o quê? Os resultados do último Censo Agropecuário do IBGE, salientando que apenas 1% das propriedades rurais ocupam 47,6% da área agrícola deste país [10]? Festejar a consolidação de uma estrutura fundiária assentada na grande propriedade, que fez da cidade, naquela época, uma big fazenda (ex)portadora de um dos maiores rebanhos de gado de Minas Gerais [11]? Celebrar que essas terras inférteis, esgotadas pelos ciclos econômicos anteriores, vêm  agora sendo adubadas com gente morta?

Enfim, ironias à parte, infelizmente não há o que celebrar. Pelo contrário, há o que lamentar.  Além de muito trabalho a ser feito, se de fato quisermos sair da cratera em que estamos metidos.

Referências:
1_https://open.spotify.com/episode/16Qtg7JQYoZpmKp7mUqLhE?si=NSeg3OBwTwGuOR8WECC3sA&utm_source=whatsapp
2_https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/01/28/brasil-e-pior-pais-do-mundo-na-gestao-da-epidemia-de-covid-19-aponta-estudo-australiano.ghtml
3_https://g.co/kgs/rRC4VV
4_https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/NaPresidenciaRepublica/As_reformas_de_base
5_https://www.ufjf.br/revistaa3/files/2014/05/web_29-31.pdf
6_https://www.ufjf.br/revistaa3/files/2014/05/web_29-31.pdf
7_https://www.facebook.com/watch/?v=160258355913653
8_https://revistacult.uol.com.br/home/bolsonaro-morte-e-festa-no-brasil/?fbclid=IwAR10PxGSILKy1TSUOxxvsWNfw10sa_85ZQWmv1GDKqeBvlBkyCkXDckz-_o
9_https://www.gov.br/defesa/pt-br/centrais-de-conteudo/noticias/ordem-do-dia-alusiva-ao-31-de-marco-de-1964-2021?fbclid=IwAR3A92pVFz–zXplYXwGvaVp7lQCuEmMMsoMyGUNQw4wqQ4G-8dUC11kkVM
10_https://oglobo.globo.com/economia/concentracao-no-campo-bate-recorde-1-das-propriedades-rurais-tem-quase-metade-da-area-no-brasil-24040134
11_https://periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2267

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