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“Meu ideal seria escrever…”

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Meu ideal seria escrever um argumento tão simples e convincente que aquele entregador do Ifood, ao ler meu argumento, se convencesse de que está votando contra os interesses da sua classe social.

Em seguida, que ele contasse meu argumento ao amigo do moto táxi, que retiraria imediatamente o boton do candidato pregado em sua Honda ainda não quitada; xingando a si mesmo depois do adesivo deixar uma marca de cola que só sairia com óleo de soja, detergente e umas boas esfregadas.

Em seguida, tomados por genuína consciência de classe, os dois enviassem meu argumento para seus grupos do WhatsApp, chegando a lugares em que o jornalismo sério não tem a mínima credibilidade.

Infiltrado em terreno inimigo, que meu argumento não fosse classificado como fake news e todos os assalariados que o lessem – independentemente do valor de seus contracheques – entendessem que a maior parte de suas horas trabalhadas vai toda pro bolso do patrão.

E, num lampejo de materialismo histórico, até os pequenos burgueses – amontoados em imóveis valorizados e pagando aluguéis especulados – se envergonhariam diante do meu argumento, compreendendo finalmente a real corrupção que a mais-valia escancara.

Além disso, que essa classe média – iludida pelo (neo)liberalismo subdesenvolvido” – também se deparasse com o abismo insuperável que separa suas pequenas empresas dos verdadeiros “donos do dinheiro” – essa elite que o meio da pirâmide insiste tanto em bajular.

E, mesmo seguindo por linhas tortas, que meu argumento alcançasse todas as religiões e que os mais reacionários encontrassem uma passagem bíblica que dissesse coisa semelhante. Com isso, valendo-se de uma coerente aplicação de “João 8:32”, que todas as crenças professassem em seus púlpitos a sagrada laicidade do Estado.

Nos batalhões, que meu argumento ressoasse pelos autofalantes e, além de deixarem a camisa da CBF para usar só na Copa do Mundo, que os policiais militares questionassem a estrutura hierárquica desta contraditória instituição e ganhassem, assim, a liberdade de lutar pelos merecidos direitos e qualidade no trabalho.

Que meu argumento se espalhasse por todo o país, moldando-se ao sotaque de cada região. Fossem feitos sonetos, repentes e cordéis desse argumento, deixando-o mais palatável e bonito de dizer. Que alguém lhe desse belos acordes e que as rádios o levassem aos ouvidos da classe trabalhadora – destinatários preferenciais do meu argumento.

Depois que se alastrasse pelo Brasil inteiro e alguém me perguntasse: “mas de onde você tirou esse argumento?”; eu responderia que não é meu, que ouvi por acaso de um sujeito desconhecido que contava a outro desconhecido na rua.

Dessa forma, que a autoria do meu argumento fosse sendo esquecida e que publicassem trechos dele na internet, atribuídos à Clarice Lispector ou a Caio Fernando Abreu.

Infelizmente, caro leitor, é certo que tal argumento não passa de um delírio utópico, fruto da mente desatinada desse que vos escreve. Afinal, com tanta insanidade compartilhada nesses dias que precedem o 2º turno, ouso desconfiar do juízo de quem diz com  sinceridade, “tudo bem”, depois de perguntado “como vão as coisas?”.

Sem falar que a criatividade de cronista, que às vezes me toma de assalto na esquina, tem atravessado a rua fingindo que não me conhece. Atormentado pelo bloqueio criativo e sufocado pela vontade de dizer algumas coisas, não resisti à tentação e peguei emprestada uma velha crônica do Rubem Braga, dando a ela traços ordinários e sem me esquecer de adequá-la aos dias de hoje – embora o momento atual nos lembre mais a Idade Média.

Assim, me valho dessas últimas linhas para confessar esse plágio, do qual nem o título
escapou – as aspas, lá em cima, são só para desencargo de consciência.

Contudo, a fim de minimizar as merecidas reprovações do meu ato, recorro-me a Fernando Sabino, que revela em uma de suas crônicas o solidário costume de emprestar ao colega de ofício uma crônica já usada quando o prazo da entrega se aproxima e as palavras teimam em não sair.

“– Será que você teria aí uma crônica pequenininha pra me emprestar?”, foi o pedido
de Braga a Sabino. Após uma busca em seus arquivos de papel, o cronista mineiro enviou ao capixaba a crônica: “O preço da sopa”. Assim que recebeu, Braga levou direto pra lanternagem, deu um trato na lataria, uma boa lustrada no capô e pronto, escapou da trabalhosa linha de montagem, com sua “A sopa”.

Enfim, depois de todas essas cartas na mesa, me parece que a crônica, junto com o isqueiro – principalmente o do amigo, que volta e meia levamos embora achando que é  nosso e nas outras vezes em que nós é que somos o amigo do isqueiro – são as coisas mais próximas do comunismo que a gente vê por aqui.

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