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Onde Mora o Pescador?

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onde mora o pescador?
Foto: Bruno Trindade/F5 Fotografia

Em Jequitinhonha, poucas vezes a atenção da população se voltou tanto para uma obra pública. Difícil seria a tarefa de encontrar algum habitante da cidade que não tenha feito um comentário sequer a respeito do Pescador. Nem mesmo as realizações que marcaram a história do desenvolvimento local provocaram tantos olhares e dizeres. Como explicar isso?

Nestas rápidas linhas, não tenho a intenção de realçar a fama de um monumento em detrimento de outras obras públicas. O que se pretende é propor uma forma alternativa de entender o significado do Pescador, não sem antes reconhecer a particularidade desse tipo de patrimônio histórico e cultural, que nunca foi devidamente valorizado em Jequitinhonha (MG).

É lamentável que o Pescador seja apenas o segundo objeto de memória instituído no espaço urbano da cidade. Por sua vez, o estado em que se encontra o outro monumento dessa curtíssima lista agrava ainda mais esse quadro de carência. A deterioração do marco da Alameda Borum Kuek, de onde foi retirado o painel que assinalava os nomes dos povos indígenas vítimas das guerras comandadas por Julião Fernandes, mancha, novamente, a história do lugar que sediou o sangrento Quartel de São Miguel.

Os monumentos se diferem das realizações que podemos chamá-las de “tradicionais”. Por obras públicas “tradicionais”, subentende-se os feitos da importância da pavimentação de vias, a construção e reforma de pontes, mercados públicos, postos de saúde, bem como a revitalização de ruas e de praças.

Essas obras com as quais estamos habituados, de tão importantes que elas são para a nossa vida coletiva, que tendemos a avaliá-las com base em suas respectivas funcionalidades. Para os munícipes, o prestígio dessas obras é determinado pela serventia que cada uma delas possui. Uma unidade de saúde, por exemplo, mesmo bem construída e equipada, não teria valor para a população de qualquer lugar somente pelo fato de existir, isto é, sem que a sua estrutura fosse funcional, útil à prestação de serviços de qualidade.

Partindo dessa perspectiva utilitarista, que mede a relevância de um empreendimento a partir de sua prestabilidade, concluiríamos, equivocadamente, que os monumentos “não servem para nada”. Afinal, a “função” desse tipo de patrimônio não é outra senão “apenas ser visto”. Entretanto, é justamente nessa característica, aparentemente banal, que reside a sua potencialidade.

Mesmo de maneira inerte e muda, um monumento é capaz de manter alguém ou determinada representação do passado viva no presente. Se bem aproveitados, os monumentos podem destacar feitos históricos e práticas sociais importantes para a identidade de um povo, além de transmitir valores do interesse dos grupos responsáveis pela inscrição dessas formas simbólicas no espaço urbano.

A propósito, um rico ensinamento de como perceber essa dimensão simbólica do lugar é dado por uma das principais personagens de Charles Pierre Baudelaire, que praticava a arte de flanar, uma espécie de “poesia da observação”. O flâneur é o arquétipo daquele que possui um estado de espírito reflexivo, característica de um indivíduo observador, que perambula atentamente e deseja saber a história dos “pedaços de história”, contidos em ruas, avenidas, praças, becos e vielas que perpassam a cidade.

Para aquele que “flana”, a cidade deixa de ser apenas uma estrutura que serve de meio para a realização da vida, uma vez que, viver em seu interior, também configura uma permanente experiência estética, memorial e sensorial. Essa experiência, que muito inspira artistas e escritores jequitinhonhenses, ainda nos permite entender a realidade em que vivemos, exercício que se fez possível nesta reflexão.

Logo de cara, o monumento em questão nos leva a pensar sobre a história da nossa relação com o Rio Jequitinhonha. Como filho de alguém que fora apaixonado pelo ato de pescar, não passou por mim despercebido o fato de o Pescador estar retornando para casa carregando apenas dois peixes. Convenhamos, é muito pouco para um rio cuja produção pesqueira já foi a maior do Leste do Estado.

O Jequitinhonha, segundo o próprio topônimo indígena que dá nome ao município, corria largo e cheio de peixes. Já o contexto presente, no qual está inserido o referido monumento, mostra-nos um rio debilitado, com drástica redução da variedade de espécies que, no passado, proviam subsistência e geração de renda para inúmeras famílias.

Hoje, piabanhas, traíras, piaus, surubins, e a própria existência da profissão pescador está ameaçada, seja pelo desmatamento motivado por atividades econômicas extensivas, que assoreiam o rio, seja pelo impacto socioambiental das barragens hidrelétricas, que alteraram um ecossistema moldado ao longo de milhões de anos.

Por fim, o monumento que homenageia essa importante personagem da história local evidencia outra questão interessante. O trajeto de retorno da pescaria que lhe rendeu apenas dois peixes, caminho que o afasta da beira do rio, contrasta o passado no qual os pescadores residiam na rua de cima/rua de baixo, tal como eram conhecidas as ruas, Elza Mourão e Alferes Julião Fernandes.

Ao que tudo indica, o aumento populacional e domiciliar nos bairros mais afastados do centro histórico, reconfiguração demográfica que se reflete no deslocamento do comércio para as imediações da Av. Dr. Franco Duarte, também alterou o local de residência do Pescador, que já não é mais um ribeirinho como em outrora. Resta saber, portanto, onde mora o pescador?

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