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Outra voz no infinito

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Outra voz no infinito
“Dream On”, de Christian Schloe

“Só não existe o que não pode ser imaginado” M.M.

A lua cheia chamou minha atenção até a janela e, num primeiro momento, pensei que fosse uma estrela. Um olhar mais detido fez notar seu movimento. A janela do meu quarto fica diante de uma pista de pouso de parapentes, que saltam do pico e pintam de cores o céu azul da cidade. Ainda não tinha visto um desses planadores durante a noite, mas não descartei a possibilidade. No entanto, percebi que o misterioso objeto parecia bater asas… Seu brilho foi se intensificando ao mesmo tempo em que revelava sua forma real: uma borboleta gigante de tonalidades neon transportava o que julguei tratar-se de um ser humano. Acompanhei seu voo até aterrissarem a poucos metros da minha janela, petrificado com a cena fantástica que via acontecer diante dos meus olhos.

Assim que tocou os pés no chão identifiquei um homem alto e de idade avançada. Vestia um modelo de terno do século passado e um chapéu escondia características capilares mais precisas. De súbito, o passageiro da aeronave insetóide direcionou a mim uma calorosa saudação. No mesmo instante, a borboleta desligou suas luzes coloridas e camuflou-se na penumbra da noite. Antes que eu cogitasse retribuir o cumprimento, o misterioso viajante se desmaterializou num súbito clarão e voltou a se materializar no meu quarto, membro por membro, como se a luz que eu acabara de ver na pista de pouso colasse cada parte do seu corpo, uma de cada vez.

Atordoado, perguntei:

— Puta que pariu! Que merda é essa?

Sem concluir totalmente sua transfiguração, uma boca flutuando acima de um pescoço engravatado, respondeu:

— Jurava que perguntaria primeiro da borboleta neon. Mas fique tranquilo, o que fiz segue rigorosamente preceitos universais que a maioria das pessoas do seu tempo ainda chama de realismo mágico — e concluiu assim que dois olhos claros se assentaram em seu rosto — Você é meu “eu do passado” e venho trazer uma mensagem importante. Não tenho muito tempo e há muito a dizer, vamos direto ao assunto…

Apegado às demandas urgentes, interrompi sua fala perguntando de números da megasena e sobre aquele antigo romance ter ou não vingado. Um pouco irritado, disse que não era esse o objetivo da visita e que o dinheiro e o amor têm hora certa de chegar.

Acordei apenas com aquela parte do sonho e Pink Floyd tocava no meu celular a poucos metros da cama: “Can’t keep my eyes from the circling skies/ Tongue-tied and twisted/ Just an earth-bound misfit, I”; consegui traduzir uma das palavras que me acordaram e fui buscar na internet o contexto de céus naqueles versos… Desbloqueei o celular e havia uma notificação no Instagram. Tomado pela busca instintiva por dopamina, ignorei a curiosidade inicial e fui tratar de assuntos mais densos do ego. Foi então que algo estranho aconteceu, comecei a ler instintivamente a legenda da primeira publicação surgida no feed e fui arremessado direto para a atmosfera do sonho mal recordado.

Li o texto (atribuído a Dim Costa Neto) como se a voz idosa do meu “eu do futuro” recitasse de improviso versos sem rima há muito decorados:

 

“No vasto oceano da existência, onde as águas da realidade e do sonho se entrelaçam, flutuamos.

Aqui, encontramos o sussurro da intuição, uma voz suave que fala não com palavras, mas com sentimentos, guiando-nos através das correntes da vida com uma sabedoria que transcende a lógica.

Este é um convite para ouvir o inaudível, para ver o invisível, para sentir o intangível.

Estamos aqui para dissolver as barreiras de quem pensamos ser para encontrarmos quem verdadeiramente somos.

Num mar de infinitas possibilidades, a linguagem da alma que emerge das águas profundas do ser, clama por se expressar.

Cada criação é um reflexo do infinito, um fragmento de um sonho maior, uma ponte entre o mundano e o divino.

O sonho de cada alma é o sonho de Deus.

Através da nossa realização, o Todo vive o seu próprio sonho.

Através de quem somos que o Todo pode agir.

Por isso, a desconexão com a nossa essência é o que nos impede de ver o nosso verdadeiro caminho.

E durante essa desconexão duvidamos do que é certo para acreditarmos no que parece seguro.

Porém, não existe segurança. Tudo o que fazemos é sempre um salto de fé. O problema é que saltamos para o lado errado; o lado que valoriza nossas inseguranças.

E em nossa insegurança, qualquer migalha faz com que a gente se sinta protegido.

Mas a verdade é que estamos nos protegendo de alcançar aquilo que nos preenche.

Dá trabalho viver o sonho.

Dá ainda mais não vivê-lo.

Este é um convite a navegar nas águas da incerteza com fé e confiança. É um momento para soltar as amarras da dúvida, para permitir que a correnteza da vida nos leve a destinos inesperados, reconhecendo que cada onda, cada maré, tem seu propósito e seu ensinamento.

Deixe a verdade iluminar a sua desilusão, deixe que a luz entre onde você está mentindo para si mesmo, tentando escapar e se afastar de quem você é.”

 

Me soou meio auto ajuda, mas, como a mensagem veio de mim mesmo, desconsiderei a crítica. Reli diversas vezes e o silêncio ecoou como boa nova. Ouvia apenas a minha respiração e isso bastava. Com as metáforas quase me soando familiares, lembrei de traduzir o refrão de Learning to fly:

 

Não consigo tirar meus olhos dos céus ao meu redor

Língua presa e distorcida

Sou apenas um desajustado terrestre, eu.

 

Fechei os olhos depois da leitura e a cena final do meu sonho descortinou-se em outra realidade 3D, com cores mais vibrantes do que os olhos diariamente nos mostram, e observei da janela a nave neon suspender no ar o senhorzinho que serei um dia.

Antes de dar três voltas em torno da santa no alto do pico e sumir num rasante colorido entre duas estrelas, das três do Cinturão de Órion, ele gritou:

— LEIA MURILO MENDES!

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