Antes de entrar nos assuntos banais e nas abordagens pouco criativas – matérias-primas da minha falta de talento pra escrita –, devo esclarecer um ponto importante praqueles que, por vontade ou acidente, se deparem com esse texto por aí, incluindo meus amigos, que vão ler por consideração e elogiar por piedade. Saibam, todos: isto não é uma coluna!
Não é questão de desprezo a esse formato jornalístico, mas de confissão sincera da minha incapacidade. A falta de domínio em tema específico, somada ao interesse em miudezas desimportantes, me qualificam a tarefa diferente, muito menor e irrelevante, por meio de outro tipo de moldagem: a crônica.
Trata-se (para os devotos e beatos da arte literária) do gênero mais comezinho da literatura. Despretensiosa e próxima da conversa, a crônica está bem perto de nós, no cotidiano da vida moderna, na linguagem simples e comunicativa e tratando das pequenas coisas do nosso dia a dia. Mesmo que, ainda, navegando nesse oceano de normalidade, há quem encontre a mais alta poesia – Rubem Braga, que o diga!
Sem o lirismo de Braga – capaz de dar protagonismo a uma borboleta –, recorro-me a um método particular de pesquisa: preciso estar atento ao mundo a minha volta, me comunicar sem rótulos, pinçar uma frase aqui, outra ali e ir juntando tudo no acervo da memória – que, por preguiça de
empregar melhor forma de registro, acabo perdendo boa parte do repertório coletado.
Escolhido o tema a ir pro papel (ou pra página em branco do word), garimpo o material armazenado na cachola, analisando cada pedaço de conversa ouvida por aí, como aquele “balango” do camelô pra ganhar o cliente, que ouvi quando passava pela calçada da Rua Peçanha, ou a sacada de gênio dita por
um bêbado desconhecido, no balcão do Bar do Dilos, depois dele virar goela abaixo a cachaça quitada por doações.
Nessa empreitada, meu maior vilão é o hábito, essa mania que temos de nos colocar no automático. Não há crônica se vejo as coisas apenas para não esbarrar com elas, andando com a cabeça nos problemas ou com os olhos no celular. É preciso conexão com o corpo e a alma encantada das ruas, como nos mostram Luiz Antônio Simas e João do Rio, em suas respectivas obras [1].
Olhando a cidade de outro jeito, vemos que as ruas têm personalidade e até mudam de caráter, conforme o dia e a localização. É fácil notar, por exemplo, que a Israel Pinheiro ganha toda uma pompa de dondoca, depois de cruzar a Avenida Minas Gerais, se vestindo de grife e quase se esquecendo dos modestos trajes que usara ao passar pelo Mercado Municipal.
Em “O nascimento da crônica”, célebre exemplar do gênero, Machado de Assis – que também perambulou por essa superfície ordinária da literatura – formula outra receita já na linha inicial: “Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: que calor! Que desenfreado calor”. Essa queixa, tão corriqueira nesses dias de verão, cria no leitor uma identificação imediata com o texto e não faz diferença se estamos no Rio de Janeiro do século XIX ou em Governador Valadares da era pandêmica – somos fisgados na primeira frase.
Defini-la é tarefa complicada, mas, grosso modo, a crônica está ali, meio que entre o jornalismo e a literatura, transitando entre um e outro, conforme o GPS do cronista. Nela, é possível tratar de assuntos concretos, assim como mergulhar num universo mais lúdico.
Por exemplo, escrever sobre a recente “treta” no twitter, em que chegaram a dizer que Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas, não deveriam ser indicados pra molecada da faixa dos quinze, se encaixa num modelo mais opinativo de crônica. Ao mesmo tempo, agora flertando com a ficção, poderíamos imaginar Machado de Assis em seu terno oitocentista, barba hipster, pele negra e óculos minúsculos, transmutado para o centro de Valadares, queixando-se da temperatura infernal que essa cidade faz e, ao bater os olhos na Ibituruna, se perguntar intrigado: “Que diabo aconteceu com o Corcovado?”.
Mesmo com todo o charme que essa liberdade traz e segundo as tentativas mais bem aceitas de classificação, a crônica não deixa de ser um gênero menor, não “se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que ele fosse”, defende Antônio Cândido em famoso prefácio [2].
Contudo, há quem discorde, alegando a existência de “escritores menores” e não de “gêneros menores”, como quem diz: “há quem escreva mal e ponto. Não culpe a fôrma do bolo, se é o cozinheiro quem não sabe cozinhar!”. Ou seja, ainda paira muita controvérsia sobre o status da crônica (camarote ou pista? Ipa ou pilsen? Hambúrguer artesanal ou o velho “podrão” com quatro bifes?), porém, não quero ficar preso nessas discordâncias. Afinal de contas, minha preocupação está na falha incontornável que cometi aqui, pois, sendo sincero, nada mais fiz do que enrolar o leitor ao longo do texto.
Vejamos: no primeiro parágrafo, depois de afirmar (com exclamação e tudo) que isto não é uma coluna, gastei meu tempo e minha pouca criatividade a falar da crônica, mas sem dizer nada de muito substancial sobre suas diferenças. Com isso, certamente alguém questionaria: “Uai, como que uma crônica tem a própria crônica, como tema? Tem certeza que isso não é uma coluna?”
Para resolvermos (ou não) esse assunto e passarmos logo pro da semana que vem, pego emprestado uma frase de Fernando Sabino – que, em vida, fora genro de Benedito Valadares, ou Governador Valadares, como acabou se popularizando depois de virar nome de cidade. Cronista dos melhores, Sabino – se valendo de uma definição de Mário de Andrade (sobre o conto) – disse, em “O estranho ofício de escrever”: “crônica é tudo aquilo que chamamos de crônica”. Ora, quem sou eu pra discordar?
[1] – “O corpo encantado das ruas”, de Luiz Antônio Simas, e “A alma encantadora das ruas”, de João do Rio.
[2] – “A vida ao rés-do-chão”, de Antônio Cândido, tornou-se uma referência na teorização sobre o gênero cronístico, embora seja apenas o prefácio do volume 5, da aclamada coletânea de crônicas: “Para Gostar de Ler”, que reuniu, nesse volume, crônicas dos craques Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga.
** Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do O Olhar.