Viver é melhor que sonhar?

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Sonho meu, sonho meu

Vai buscar quem mora longe, sonho meu

(…)

Vai mostrar esta saudade, sonho meu

Com a sua liberdade, sonho meu

(Dona Ivone Lara, 1978)

 

Este texto trilhará um caminho diferente dos outros ensaios que já escrevi para O Olhar. Hoje quero utilizar esse espaço para abrir coração e mente em um cenário em que sobra angústia e falta ânimo.

É claro que, a depender de marcadores sociais como gênero, classe e raça, grande parte da população está rodeada há muito tempo de angústia, materializada em violências múltiplas, incluindo a sensação (e a produção) de invisibilidade perante a sociedade e o Estado.

Mas a pandemia adicionou um outro ingrediente a esse bolo de crises, um agente tão minúsculo que é invisível aos nossos olhos e que impossibilita parte do viver tão essencial para a gente: o estar junto, a reunião, o abraço, o beijo, o carinho.

No meio desse caos pandêmico, recebendo notícias ruins nos jornais, na internet e em mensagens de amizades queridas, que perderam seus amores para uma doença tão terrível como essa, o espaço do criar vai ficando cada vez mais apertado.

Claro que a dor também nos move a produzir coisas novas, mas acredito que nada se compara a compartilhar o mesmo espaço, o mesmo abraço, a mesma mesa de bar.

Inevitável dialogar aqui com dois textos de pessoas queridas que são colunistas no O Olhar, Lucas e Welder, que também trouxeram reflexões muito interessantes, em formatos diferentes, sobre o existir na pandemia.

Pensando em colaboração com os dois, pretendo trazer uma outra perspectiva e que toca em pontos pessoais. Qual a importância do sonhar em tempos de crise?

Sonho causado pelo voo de uma abelha em torno de uma romã um segundo antes de acordar. Salvador Dalí, 1944. Imagem: Reprodução

Sonhar sempre foi uma experiência que me fascinou. Adormecer e ser levada a uma realidade, por vezes tão diversa do real físico, que segue o seu próprio fluxo, em que o tempo e a forma de o sentir se difere tanto da experiência física.

Mas foi com Ailton Krenak que eu percebi o sonho como algo a mais do que o adormecer e viajar. Em “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019), Ailton me mostrou que o sonho é uma forma de orientação de vida:

“Fiquei muito apaziguado comigo mesmo hoje à tarde, quando mais de uma colega das que falaram aqui trouxeram a referência a essa instituição do sonho não como uma experiência onírica, mas como uma disciplina relacionada à formação, à cosmovisão, à tradição de diferentes povos que têm no sonho um caminho de aprendizado, de autoconhecimento sobre a vida, e a aplicação desse conhecimento na sua interação com o mundo e com as outras pessoas.”

Ailton me deu o pontapé e a terapia me mostrou o caminho. O atendimento clínico me possibilitou a experiência de viver em sonho um sintoma que me afetava psicologicamente.

No espaço onírico, trilhei alguns passos no enfrentamento de uma relação difícil e que o distanciamento físico e a própria realidade me impediam de atuar efetivamente.

Esse episódio, que se repetiu algumas outras vezes enquanto eu estava em terapia, me mostrou que eu precisava investir nos meus sonhos, que eu precisava tratar aquilo com mais seriedade.

E foi assim que conheci o trabalho primoroso de Sidarta Ribeiro. Em 2019 ele publicou o livro “Oráculo da noite: a história e a ciência do sonho”, obra que conheci no começo da pandemia, após assistir algumas lives em que ele participou, inclusive junto com Ailton.

Logo que tive uma oportunidade comprei o livro, porque estava cheia de curiosidade para compreender melhor como os sonhos funcionavam, por qual razão eles existiam. E claro, com motivo: além da experiência da clínica, tive sonhos intensos e muito “malucos” no começo da pandemia.

Eram quase obras surrealistas, com direito a pessoas gigantes, paredes de pizza e vacas me perseguindo. As narrativas eram das mais variadas, mas uma coisa me fascinou: no começo da pandemia eu sonhei muito com minha infância e adolescência, mais especificamente com o ambiente escolar. Criei o hábito de anotar e me divertia com as histórias que a minha mente foi capaz de formular.

Nos últimos tempos, com o trabalho e o mestrado na minha cola, os sonhos deram uma sumida do meu consciente e retomaram recentemente quando notei essa ausência que me incomodou.

Investi em ter boas noites de sono, em exercitar a mente para conseguir lembrar dos sonhos e foi sensacional. Imagino que a leitura de Sidarta, que me acompanha toda noite ao me deitar, tenha influenciado diretamente nisso, mas sem dúvidas o meu esforço de dar importância à experiência onírica foi fundamental.

“Em seu pior, os sonhos são reverberações profundamente desagradáveis, às vezes úteis para prevenir riscos evitáveis, outras vezes apenas apavorantes. (…) No seu melhor, os sonhos são a própria fonte de nosso futuro. O inconsciente é a soma de todas as nossas memórias e de todas as suas combinações possíveis. Compreende, portanto, muito mais do que o que fomos – compreende tudo o que podemos ser. (…) A meio do caminho entre o melhor e o pior, o sonho é uma colagem mal definida de imagens e ecos desconexos dos múltiplos desejos inacabados.” (Sidarta Ribeiro, 2019, pag. 99)

Sidarta ainda alerta para uma questão importante e que pode passar batido quando falamos de sonho: em uma sociedade na qual o tempo é sempre escasso, o despertar diário envolve o despertador, que por vezes é acompanhado de um atraso para cumprirmos nossas obrigações, e o sono perde em qualidade, o sonhar fica no lugar do impossível.

Enquanto nas culturas da Antiguidade o sonho era um oráculo capaz de determinar futuros e tecer presságios, na contemporaneidade o sonho foi colocado de escanteio.

Perceber a importância dos sonhos para nossos antepassados e em culturas ancestrais tão importantes para a formação do que somos hoje, colocou o sonho em lugar ainda mais especial para mim do que antes.

Em um cenário de crise, no qual a elaboração de futuros, principalmente futuros positivos, é absurda de difícil, o momento do sonhar é um espaço de inúmeras possibilidades.

Ainda que agora aquele sonho vergonhoso de sair pelada(o) na rua tenha sido substituído pelo sair na rua sem máscara, o espaço do sonhar se mostra um roteiro de filme em branco, em que toda noite escrevemos uma história possível e impossível.

Retornei à clínica psicanalítica e não podia ter fomentado meus sonhos em momento melhor. Compartilhar na análise as aventuras que me enfio toda noite tem sido muito rico e encerro este texto fazendo um convite a você, leitor(a), parafraseando Gabriel, meu psicólogo: sonhar é como se apaixonar, é ficar sem chão.

Estimular o sonhar e compreender a sua importância tanto para a nossa saúde física, no enraizamento de memórias no cérebro, quanto para a nossa saúde mental, é um exercício incrível e pode ser muito divertido. No meio da pandemia, o tratamento precoce que recomendo é este: sonhar.

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