Lembro das primeiras aulas e do tanto que minha cabeça deu nó, tentando entender o pensamento de todos aqueles autores que eu nunca tinha ouvido falar. Konrad Hesse, Hans Kelsen, Noberto Bobbio e outros nomes que só lembraria com o auxílio de algum nerd da minha sala.
Conheci o João Paulo no segundo período da faculdade, quando ele lecionava Introdução à Ciência do Direito, ou simplesmente ICD – como ficou intensamente marcado na cabeça de muitos estudantes que, como eu, ficaram acomodados demais com a mansidão do início do curso.
“Agora sim, eu me sinto numa Federal”, me disse um colega de sala com quem eu compartilhava a suspeita de toda aquela superficialidade encarada até ali. “Tava tão facinho no rasinho”, mas era nítido que faltava alguma coisa. Bem, o certo é que não foi difícil passar por essa disciplina e ninguém saiu ileso dela.
Dentre os reprovados, e foram muitos, a maior parte amargurou certo rancor do professor, dando início a um clima de terror que foi sendo passado aos alunos que chegavam nessa segunda fase do desafio. Tantos ainda com a ingênua ideia de que poderiam repetir a dose inicial: ir em todas as festas, frequentar bares e botecos no meio da semana e, ainda assim, (quase) fechar todas as provas e trabalhos.
A cada turma que passava pelo 2° período, mais integrantes eram direcionados para os dois únicos grupos possíveis: os que odiavam o João Paulo e os que admiravam o João. Sim, João. Como um aluno escreveu anonimamente uma vez – sendo a única verdade de um texto ridículo –, os que gostavam do professor de ICD o chamavam simplesmente pelo primeiro nome.
Confesso que, no início, ele me intimidava um pouco. Não é fácil ter empatia com quem destrói nossas frágeis certezas. Contudo, um Chokito e uma confissão sincera (que eu jamais revelaria publicamente) foram o suficiente para quebrar o gelo, darmos boas risadas e nos tornarmos amigos.
Talvez alguns idiotas da época, que cheguem a ler essa crônica, pensem que minha aprovação nessa temida matéria tenha acontecido por conta da amizade que começou a ser gestada ali, com chocolates e infâmias.
Não que eu tenha que me explicar, até porque passei com folga de pontos nessa matéria – o baque me fez encarar o curso com mais responsabilidade e maturidade intelectual –, mas aproveito o gancho para tornar público um episódio que me serviu de aprendizado pra vida.
Já no terceiro ou quarto período, João foi novamente meu professor em História do Direito, ofertada como disciplina optativa, por não compor a grade oficial do curso e, desde a primeira aula, fui um dos alunos mais interessados. Lia todos os textos, participava das discussões em sala e, intimamente, várias outras certezas iam caindo por terra.
Era inegável que, fora alguns trejeitos, vaidades e preciosismos intelectuais, as aulas do João eram ótimas.
Enfim, totalmente encantado com a matéria, fiquei bem feliz quando saiu a vaga para monitor. Além da remuneração, eu teria uma boa desculpa para estudar mais a fundo tudo aquilo que já me interessava gratuitamente.
Tratei de estudar, revisando todos os textos. Porém, não enviei o e-mail de inscrição para o processo seletivo. Fui lembrar só depois de vencido o prazo. No dia seguinte, desavisado, cheguei cheio de sorrisos pedindo a ele que me deixasse fazer a prova. Foi aí que a alegria, tão comum em nossas conversas, deu lugar a uma seriedade que me encabulou.
Ele não foi grosso, não foi deselegante, apenas falou com a seriedade de quem ensina não só diante da lousa, desconstruindo minha tola malandragem diante da desonestidade que seria aceitar meu pedido. “Quer ser monitor? Jogue duro!”, ele disse.
A verdade é que lembro de pouquíssimas coisas que estudei nessa disciplina, porém, pongando na garupa do poeta: “quando a vida esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta”, vejo que a coragem é mesmo isso que o João disse.