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Dr. Anacleto, o Pecador

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dr. anacleto, o pecador
Imagem gerada por IA.

Coluna Sorrindo o Leite Derramado

Caro leitor, em julho, uma amiga querida me enviou um texto de Richard Asher, um grande clínico inglês que viveu no século passado e deu grandes contribuições para a medicina, como a descrição da Síndrome de Munchausen e da loucura mixedematosa. O texto enviado falava de como nós médicos podemos fazer mal aos pacientes! Ele descreve os pecados do médico, trata-se de um conteúdo muito interessante e verdadeiro, sendo atual até os dias de hoje.

Depois que li, divulguei entre colegas, para que refletissem e penso em lê-lo para meus alunos. Uma amiga médica me contestou, dizendo que seria absurdo hoje ficar falando de nossos pecados para alunos e para os “leigos”… achei muito engraçada essa preocupação, porque eu sempre pensei que, nós médicos, somos mortais comuns, com um trabalho difícil, só isso! Então lembrei-me do Anacleto, que conheço desde a juventude! O rapaz, cabe certinho na descrição do velho Asher!

Anacleto formou-se numa escola médica não muito conceituada e, desde os primeiros anos, agia como se fosse o chefe da disciplina de Clínica Médica da USP! Já no terceiro ano de faculdade, usava BIP (sim leitor, eu sou do tempo do BIP! Um parente jurássico do Whatsapp), como se fosse um médico ocupadíssimo! Não se podia dizer que Naná fosse um estudante aplicado, mas com certeza no item atitude, ele era imbatível! Quando se formou, não teve tempo para fazer residência e foi ser um médico rico pelo interior do Brasil… Por uma dessas peças do destino, me encontrei com ele algumas vezes durante minha carreira e pude testemunhar que ele é um “case de sucesso”:

– Anacleto usa a obscuridade. Seu linguajar é rico em expressões médicas, que seus pacientes não fazem a mínima ideia do que significam… e, se os coitados pedem para que ele se explique, o doutor fica até ofendido! No seu íntimo sabe que quanto menos se fizer entender pelos pacientes, mais ele está seguro e mantém sua “superioridade”… sua letra? Nem Champollion decifraria! Enfim, para seus pacientes, Dr. Naná é uma esfinge!

– Crueldade. Nosso esculápio nem percebe, mas é sempre cruel. Não tem dó de desenganar um paciente, adora colocar prazos fatais (“tem mais seis meses de vida!”) de maneira seca e sem rodeios. Por outro lado, não se preocupa em orientar seus pacientes em relação aos cuidados mínimos com as doenças que trata, causando confusões e sofrimentos desnecessários. Naná ainda aprecia indicar procedimentos doloridos, porque o paciente não vai esquecê-lo… Ou passar remédios caros, mesmo que saiba que o paciente não pode comprar…

– Falta de educação. O Doutor cuida de sua imagem com dedicação! Veste-se impecavelmente, com uma elegância imaculada e só anda de carro importado. Mas nunca cumprimentou o porteiro do hospital, vive dando esculachos nas técnicas de enfermagem… sempre trata os pacientes pobres com desdém e, com os colegas mais novos, é sempre descortês e, se a colega for bonita, usará uma piada sexista…

– Anacleto é especializado em novidades da medicina, título que conseguiu em uma pós-graduação duvidosa (em que pagou um estudante pra fazer sua monografia), mas que está num belo quadro em destaque em sua antessala… o que significa ser especialista em novidades da medicina é difícil de explicar, mas pra quem se informa pelo WhatsApp, esse título é bem bacana! Conte com Anacleto para prescrever uma dieta revolucionária; precisa de um aparelho que você não sabe pra que serve, mas tem um nome complicado e vai tirar uma boa grana do paciente (porque o plano não cobre…)? Anacleto tem! Precisa de uma injeção que faça milagres? Anacleto preconiza! Quer um doutor que trata vírus com cloroquina? É só procurar o Naná, o rei da novidade!

– Anacleto adora dizer que tratou vários casos complicados e raros, está sempre pronto para contar um caso, de dez anos atrás, onde brilhou atendendo uma síndrome rara (que na verdade foi conduzido por um colega novato…).

– Quando o assunto é bom senso, nosso herói está a pé… nunca acerta nas escolhas, porque não conversa direito com seus pacientes, então sempre prescreve uma medicação que o cliente vai gastar metade do seu salário e não vai funcionar, ou pede um exame que não tem nada a ver com o quadro clínico… sua sorte é que, na maioria das vezes, os pacientes vão melhorar com, sem ou apesar do tratamento…

– Claro, ele tem muita preguiça! Preguiça de examinar os pacientes, de colher história corretamente, de ler artigos médicos, de se atualizar… acha que os representantes de laboratórios farmacêuticos “sempre trazem a boa nova”! Costuma se gabar que só prescreve remédios novos e modernos…

– O seu apelido na recepção do hospital é Dr. Naná, o breve! Porque suas consultas são meteóricas e suas internações breves. Ele mesmo diz que não tem muito tempo a perder, porque é um médico bem sucedido, mas a resolutividade…

– E que fascínio por novidades! É sempre o primeiro a adquirir aparelhos novos… mesmo que não saiba usar direito. Não é incomum achar sua foto em propagandas de revistas locais, posando de braços cruzados à frente de um moderníssimo aparelho médico…

– O nobre Galeno não é de pensar muito, mas impressiona os pacientes com sua infinita certeza… Fala com os pacientes que vai pedir o exame só por “desencargo de consciência”, mas que já tem certeza do que vai dar…” então, vá tomando esses três medicamentos…” Anacleto o rei da certeza!

Nosso doutor é tão talentoso em ser ruim, que o grande Asher teria que acrescentar mais pecados ao seu texto histórico:

– Naná tem obsessão por pedir exames! Ele é o queridinho dos prestadores de serviços (exames laboratoriais, imagens e o que mais tiver), o paciente sempre sai feliz de sua consulta, com um calhamaço de pedidos, sem nem imaginar que o seu médico segue uma receita de bolo e pede os mesmos exames para qualquer queixa, esperando uma mísera alteração para tratar uma doença que, provavelmente, nem existe… para ele dá menos trabalho que examinar ou conversar com o cliente.

– Sendo um médico moderno, Anacleto não pode abrir mão das redes sociais! Tem um gerente de marketing que abastece seu Instagram com as mais diferentes informações, sempre entremeado com fotos do doutor de braços cruzados em frente a algum moderno aparelho, ou fotos de antes e depois da intervenção do brilhante médico! Naná inclusive está pensando em começar sua trajetória no Youtube – ele nasceu pra isso!

– Sem muta formação médica (que nunca lhe fez falta!), é o rei das Fake News, plantando boatos e mentiras que lhe favorecem, politicamente ou do ponto de vista comercial…

– Anacleto, nesse ano eleitoral, está investindo maciçamente em doações para candidaturas de prefeitos em várias cidades de nosso entorno, seu projeto é ser deputado estadual nas próximas eleições! Se não der certo, se candidatará ao CFM…

Ainda bem, caro leitor, que Anacleto é uma exceção no meu círculo de relações profissionais. Mas gosto de usá-lo como um exemplo a não ser seguido pelos meus alunos! Nós, médicos, como qualquer ser humano, podemos pecar, sim, mas só alcançaremos o perdão se reconhecermos o pecado!

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