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Guia Plutônico para criar boas filhas

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Guia Plutônico para criar boas filhas
Imagem gerada por IA

O ano é 2250, o Planeta Terra já agoniza há uns dois séculos. O capitalismo e sua ganância tornaram o planeta inabitável, a raça humana sobrevive porque a resiliência é uma de suas características. Mesmo com as modificações genéticas que nos deram uma aparência de anfíbios e uma cor azulada, ainda nos parecemos com os antigos humanos. O bom da cor azul, foi que não existe mais motivos para sermos racistas, afinal, todos os sobreviventes têm tons azulados em suas peles escamosas. Também o preconceito de gênero se extinguiu, porque a grande maioria dos terráqueos se tornou hermafrodita.

Os avanços da tecnologia permitiram que sobrevivêssemos às condições inóspitas que a própria humanidade produziu ao longo dos tempos. Sobrevivemos à poluição que tomou conta do planeta, conseguimos purificar a água do mar e torná-la bebível, o que foi fundamental, já que, com o derretimento das calotas polares, a maioria dos continentes está submersa. As guerras acabaram, depois que aquele maluco americano exterminou metade da Ásia… O problema é que fomos nos modificando, ficando azulados, com braços e pernas escamosos, o cérebro ganhou mais massa e ganhamos a habilidade de respirar debaixo d’água… As teorias são inúmeras: radiação? Agrotóxicos nos alimentos? Metais nas águas potáveis? Plástico no esperma e nos óvulos?

A verdade é que, em 2250, somos outra raça humana. Vemos as fotos de nossos ancestrais e nos encantamos com a sua beleza, mas também nos envergonhamos com sua ganância e falta de respeito pela natureza. Estamos vasculhando o universo, atrás de um planeta que possa nos receber e ser base para uma nova história da humanidade.

A missão que explora o planeta Plutão é bem interessante. O planeta está coberto com 100% de água, provavelmente lá também aconteceu o degelo das calotas polares. Nossos exploradores percorrem os oceanos e já acharam várias cidades submersas. Numa delas, num templo de uma religião desconhecida, acharam uma arca e, dentro dela, um papiro, escrito num idioma que misturava latim com línguas célticas (ou algo parecido…). O autor desse papiro era um sacerdote da religião extinta e ditava conselhos para pais de meninas. O documento histórico, aqui na terra, foi alvo de inúmeras críticas, pois foi considerado um monumento ao machismo e um atentado contra a autonomia das mulheres. Estranhamente, uma parte de nossas igrejas cristãs modernas (sim, ainda não nos livramos do ópio das religiões!) o adotou como guia de educação, pois se mostrou perfeito para seus interesses.

Segue a tradução do ‘Guia para criar boas filhas plutônicas’ da religião extraterrestre remota, que serve como uma luva para nossos sacerdotes modernos:

  1. O objetivo desse documento é orientar os pais para as armadilhas da criação de meninas, esses seres frágeis que são facilmente cooptados pelos demônios. O Guia foi escrito pelos seguintes motivos:
  • Queremos que nossas filhas vão para o Paraíso, já que lá são necessárias para continuar nos servindo.
  • Queremos que sejam boas filhas, tementes aos Deuses e fiéis servidoras de seus pais.
  • Queremos que tenham mais deveres que direitos, pois assim convém ao nosso patriarcado e contradizemos as intenções do maléfico time dos demônios.
  • Finalmente, desejamos ardentemente ampliar a oferta de boas esposas, tão importantes para o conforto de nossos valorosos guerreiros.

2. É fundamental que se escolha um bom nome, de preferência de cunho religioso, para nossas meninas, evitando nomeá-las com alcunhas de atrizes ou cantoras, para que não se inspirem pelo pecado.

3. Desde muito cedo, ensinar-lhes prenda; uma mulher de família deve ser prendada. Um bom começo é fazê-las servir aos irmãos varões em primeiro lugar, pois estes estarão ocupados aprendendo a arte da guerra.

4. Desde sempre, elas devem aprender a obedecer sem questionamentos, pois é sabido que mulheres não possuem arcabouço intelectual para elaborar contestações.

5. A formação intelectual das meninas não deve exceder jamais a dos filhos homens. Elas devem saber ler para poder seguir receitas de pratos que vão alimentar os guerreiros, podem também ser treinadas para ajudar os filhos nas lições mais elementares (habilidade não obrigatória). Se as educarmos além disso, cruzamos uma linha perigosa, pois as mulheres, como sabido, são seres facilmente influenciados pelos rabudos, e poderiam desvirtuar a sociedade. Se uma menina insistir em estudar mais que seus irmãos varões, deve ser exemplarmente castigada, pois a educação superior, está mais que provado, conspurca a alma feminina.

6. Se acaso o marido exorbitar de suas maneiras e tratar a esposa de forma brusca (e até mesmo violenta), o Sacerdote deve ser consultado e convencê-la a perdoar, já que o marido sempre saberá o que é melhor para toda a família.

7. Se acaso houver evidências de que o marido é adúltero, novamente o Sacerdote deve ser consultado e convencê-la a perdoar, porque os hormônios masculinos são impositivos e o homem não tem culpa de haver tantas tentações demoníacas na forma de mulher.

8. Os livros devem ser proibidos às mulheres, pois o ato de ler degenera suas mentes e as tornam mais susceptíveis às tentações demoníacas. A exceção deve ser a leitura das escrituras sagradas, mas sempre supervisionadas por um Sacerdote e nunca devem ler as escrituras em profundidade, seria perda de tempo, já que elas têm um arcabouço intelectual limitado.

9. Se uma filha é pega escrevendo, deve ser rapidamente castigada. As mulheres que escrevem atraem os demônios.

10. Quando uma filha está prometida em casamento, deve ser separada das outras e treinada pelas mulheres mais velhas da família a estar sempre disponível ao apetite sexual de seu futuro varão. O contrário deve ser desincentivado, já que a vulgaridade aproxima a mulher dos demônios.

11. Por fim, as filhas, desde cedo, devem se preparar para parir grandes proles, para que nosso reino jamais desapareça da face do planeta. O nascimento de pequenos varões deve ser sempre premiado com mel e néctar; o nascimento de filhas deve ser sempre resguardado com escuridão e silêncio.

Como pôde uma civilização adotar valores tão abjetos? Nós, terráqueos azulados e escamosos, temos muito a aprender com os erros dos Plutônicos!

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