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Mitologia popular do Jequitinhonha: o Bicho da Fortaleza

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Arte do livro ilustrado, "Meu tio lobisomem", do músico e desenhista Manu Maltez. Imagem: Reprodução/Internet

A importância da ciência é inegável. Sua capacidade de responder questões por meio de uma linguagem controlada e fundamentada, possibilita-nos, por exemplo, estarmos vacinados.

Todavia, minha postura passa longe de um cientificismo. Ponho-o no mesmo patamar daquele ateísmo pueril. Ambos contribuem para tornar nossa existência um tanto quanto chata, estéril.

Tenho a ciência como apenas um dos meios que dispomos para explicar os fenômenos que circundam a vida e a morte. A poesia – a arte de um modo geral – continua desvendando lógicas profundas e insuspeitas da memória coletiva e do nosso cotidiano. Tal como faz o folclore.

Para Gilberto Vasconcelos, professor da UFJF, “o fato de o Brasil possuir um dicionário do folclore deveria ser objeto de reflexão filosófica”. Por que a presença do folclore no dia a dia do povo é irrecusável?

Dado esse que não se restringe ao povo brasileiro, ressalta. Teria o Homem levado uma pata de coelho como amuleto quando foi à lua em uma astronave. Quer dizer, até a Nasa, ponta de lança da tecnologia mundial, paga tributo à superstição milenar.

O que põe abaixo a relação errônea que se tem estabelecido entre folclore e iletramento. Quando assim fazem, desconsideram que, na linguagem falada – matéria prima essencial do folclore –, há uma maior aproximação entre emissor e receptor. Ela é mais espontânea, e se vale de recursos extralinguísticos que facilitam sua compreensão. A entonação, os gestos, as posturas e expressões faciais; tudo que é mais difícil de ser transmitido através da escrita.

Ou seja, não é pelo fato de ser a fala o principal fator de transmissão do folclore que tais costumes populares seriam um privilégio de iletrados. Isso é coisa de ignorante, lembra o professor. Como também é a ideia que daí se deduz, de que a pobreza deva ser conservada para o folclore continuar existindo.

Foi por essas e outras, segundo Giba, que Oswald de Andrade teria insurgido, denunciando insistentemente a cultura popular como fetiche da pequena-burguesia, que muitas vezes pensa assim. Tratada dessa maneira, para os tais, a cultura popular teria função semelhante ao papel que a macumba cumpre para turistas.

Não à toa, o seu mestre, grande conhecedor desse acervo erudito que emerge da acústica do povo, tachou o turismo, essa “organização burguesa da viagem banal”, esse promotor da “viagem sem viagem”, de inimigo número um do folclore. O turista não escuta, e observa mal. Pois está sempre suprimido pela pressa, pela necessidade de aproveitar o resto de tempo de que dispõe. E quando se trata dos fatores sociomísticos, isso configura um problema.

Mitologia popular do Jequitinhonha: o Bicho da Fortaleza
Luís da Câmara Cascudo, “filósofo do povo brasileiro”, na opinião de Vasconcelos. Foto: Reprodução/Internet

Desde que me entendo por gente ouço falar do personagem histórico mais conhecido da mitologia popular do Vale do Jequitinhonha. Nas ocasiões em que o Bicho da Fortaleza era assunto, valia-me apenas do ouvido como órgão fundamental. No máximo, fazia alguns questionamentos que induziam a continuidade da estória narrada sempre por alguém mais velho o bastante para impor o devido respeito e ar de veracidade.

O Bicho de Pedra Azul – sua outra denominação que remete à cidade na qual se transformou a antiga localidade de Fortaleza – não é mencionado uma vez sequer por Câmara Cascudo em Geografia dos Mitos Brasileiros.

Caso contrário, certamente o teria classificado no conjunto dos mitos “secundários e locais”, em que pese a sua originalidade que não o deixa dever nada para os “mitos primitivos e gerais”. No mínimo, haveria tratado do “ciclo da angústia infantil” das crianças do Vale do Jequitinhonha de maneira particular.

De fato, a estética dessa lenda nos colocava em profundo estado de transe que, inevitavelmente, cedia lugar ao medo quando caía a noite. A propósito, as noites deste lugar ainda intimidam. Percebo isso agora, neste exato momento, em sua hora morta – como se diz  –, enquanto escrevo este texto.

Aqui, a urbanização nunca foi sinônimo de morte do rural que pariu a cidade. A linha que separa os bairros periféricos da mata adjacente é bastante tênue, se é que existe. Completam esse ambiente fértil para o medo, as ruas vazias e escuras ecoando o barulho do vento, quando não, da rasga-mortalha cortando o céu, ou das pisadas de algum animal, que, no passado, imaginávamos ser as do dito cujo.

Uma das possíveis formas de se encontrar com o Bicho da Fortaleza. Imagem: Divulgação/ Blog Conheça Minas.

“A época dele já passou”, disse-me um senhor amigo quando soube que eu escreveria algo sobre. Essa intimidade evidente em sua fala, que do bicho diz como se o conhecesse, é o que confere a diferença dessa lenda em relação às outras. Afinal, ninguém conhece a família do Caipora, ou onde fica a casa em que residiu o Curupira.

Neste causo, eu me refiro a um conterrâneo de carne e osso que virou assombração. Joaquim Antunes de Oliveira é o protagonista de “um dos contos mais macabros do Brasil”, de acordo com Marinaldo Barbosa, fisiologista que estuda o medo e autor do romance inspirado nessa lenda que adentrou a Bahia e boa parte das regiões circunvizinhas.

Nascido em 1799, Joaquim foi um rico fazendeiro dono de uma terra ocupada por um enorme rebanho do qual cuidava, não sem a ajuda de uma mula. Certo dia, mesmo ciente do esgotamento físico do animal, movido pela ganância por mais dinheiro, Joaquim insistiu em selá-lo para dar conta da lida diária e se deslocar até a cidade após o expediente.

Sua mãe, ser humano ímpar que destoava da aridez que caracterizava a vida rural daqueles tempos, revoltada com a atitude do filho, retirou a sela da mula e devolveu o animal ao curral. Diante da cena, Joaquim, tomado pela ira, cometeu a perversão fatal que motivou sua excomungação pela própria mãe, cujo lombo fora chicoteado enquanto o transportava até a praça da igreja central.

Joaquim, no fim das contas, padeceu de severa doença que tinha a fome insaciável como sintoma prevalente. Sintoma esse que haveria de atormentá-lo eternamente. Anos após a sua morte, moradores da localidade notaram uma quantidade excessiva de pelos nas fendas que surgiram repentinamente em sua sepultura, além de constantes ataques aos rebanhos e varas da região. Estava criada a lenda.

Desde então, as mães do Vale passaram a amedrontar suas criancinhas com relatos de aparições desse monstro. Tudo para evitar que seus filhos aprontassem demais, ou que dormissem muito tarde. Há quem diga que foram elas as principais responsáveis pela propagação desse causo, quem sabe por sua elaboração.

Embora um tanto assustadora, a velha crença “praga de mãe pega”, tem uma razão de ser: a mãe é a maior e primeira autoridade de nossas vidas. Quem já teve medo dessa estória sabe disso como ninguém.

Hoje, infelizmente, a mentalidade folclórica do povo brasileiro, criativa e fantástica, está sendo ameaçada pela picaretagem terapêutica psicodélica de certas organizações religiosas, denuncia Vasconcelos. Curiosamente, na política e na cultura, a ordem do dia é o assassinato da mãe gentil, que se materializa, ora no feminicídio, ora na destruição da natureza, e na venda de tudo que pertence à pátria. Estamos vivendo tempos de matricídio (sic).

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