Muito se engana quem limita o extremo sul da Bahia à cidade de Mucuri, localizada ali na “rabiola” do estado baiano e separando o nordeste das praias geladas do Espírito Santo.
O caldo cultural, regado a acarajé e azeite de dendê, rompe os limites geográficos. Divisa Alegre, cidade mineira que faz fronteira com a Bahia, já dita o sentimento nordestino que contagia boa parte do estado mineiro.
A Bahia é o berço cultural do Brasil, foi ali que nascemos pro ocidente e foi ali que surgiram grandes cânones da nossa arte tropical. Dorival Caymmi e João Gilberto foram revolucionários em suas criações musicais. Além deles, Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro, dois gigantes da literatura.
Contudo, a linguagem coloquial, essa da informalidade do dia a dia, é que inunda regiões inteiras de Minas, por meio do caudaloso “baianês”, que, por vezes, se sobressai sobre o tímido e discreto dialeto mineiro.
A doce melodia da fala baiana dissipa-se por inúmeras cidades das Gerais, esmorecendo-se a cada município, diante da resistência – mesmo branda – do nosso “mineirês”.
Mas, o sotaque não veio sozinho desbravar essa terra montanhosa e afastada do Atlântico. Junto do “oxente” vieram milhares de “painhos” e “mainhas”, com filho, cachorro, porco, galinha e tudo o mais que pudessem carregar.
De mala e cuia, as famílias baianas foram criando raízes, “por preguiça de seguir viagem”, diriam alguns. Mas, principalmente, buscando oportunidades melhores em um Sudeste que parecia promissor.
Pelo que se tem de registro, a diáspora baiana, da primeira metade do século passado, chegou até as margens do Rio Suaçuí Grande, fazendo ficar por ali quem não havia parado pelo caminho.
Tempos depois, já com alguma organização social nas proximidades da Serra do Paiol, os migrantes baianos fundaram o município de Frei Inocêncio, construindo a cidade e também um dialeto cantado, bem característico e que, até hoje, podemos ouvir sua melodia no dizer de moradores mais antigos.
Ali já é um ensaio pra ser baiano. Porque, baiano mesmo só depois do Posto Bicho Grosso. Ainda mais acima, em Teófilo Otoni, onde a coisa já vira uma micareta, qualquer mineiro da capital precisa de um tradutor, caso queira comprar uma Mate-Cola.
Em tempos áureos, Frei Inocêncio ganhou boa fama pela qualidade da sua carne de sol. Os açougues na beira da BR-116 – rodovia que divide a cidade ao meio – viviam lotados de fregueses vindos de outras cidades e até de outros estados.
Pedro Baiano, que chegou a ser dono do maior açougue de lá, era conhecido nacionalmente e o Festival da Carne de Sol passou a ser uma festa tradicional da cidade, transformando-a na capital dessa especiaria, tão bem servida com mandioca.
Nasci em 1988 – ano em que o Bahia foi campeão nacional – e tive que enfrentar, na barriga da minha mãe, os quarenta quilômetros que separam Frei Inocêncio de Governador Valadares, pra poder nascer aqui, porque ainda não se fazia esse procedimento por lá.
No entanto, cresci em Frei, jogando bola descalço na Rua Bahia, que começa no entroncamento com a Avenida Doutor João de Souza Lima (motivo de a minha mãe inverter meus sobrenomes – “Lima de Souza” – pra deixar claro que não somos seus parentes) e termina ao encontrar com o Rio Suaçuí, onde eu me banhava sem que meus pais sonhassem com isso.
Há quem diga que o resultado das eleições municipais de 1988, quando nasci, deu origem ao maior atraso que já governou a cidade, fazendo da prefeitura uma verdadeira Capitania Hereditária. Porém, felizmente, essa ameaça parece ter sido expurgada no último pleito.
Durante anos, Frei Inocêncio foi colônia de Valadares, já que o CEP daqueles que administraram a cidade nos últimos quatro mandatos eram daqui e não de lá. Só agora, passados quase 521 anos da chegada de Cabral à Bahia, é que se vislumbra algum princípio de independência frei-inocenciana.
“Aleluia!”, diria Inocêncio, se ainda fosse vivo pra celebrar uma missa no dia de hoje, em que o município – que leva seu nome e seu cargo eclesiástico – completa 58 anos.